Circuito deficiente
 
 
Problemas marcam competição entre atletas em cadeira de rodas, levando equívoco ao resultado
 
     
 
Josciene Santos
Da equipe de reportagem
 
     
 
 
Josciene Santos
 
 
 
     
 
     
 

Com uma entusiasmada voz que transmitia convicção, o locutor do II Circuito de Deficientes Sobre Rodas anunciava à platéia que se encontrava no Dique do Tororó no domingo, 20 de maio: “Uma prova democrática e emocionante, que reuniu mais de cinqüenta cadeirantes competindo harmoniosamente ao longo do Dique do Tororó. Independente do desempenho na corrida e da posição da chegada, os homens e mulheres deficientes físicos que romperam a barreira da limitação e do preconceito receberam como prêmio maior a conquista de mais um espaço de cidadania”, dizia ele. Tal circuito, porém, foi marcado por confusão e disputa que se estendeu mesmo depois do fim da competição.

Os competidores teriam que dar uma volta completa ao redor do dique, caminho este que estaria sendo supervisionado e demarcado pela Superintendência de Engenharia de Tráfego (SET). No entanto, um descuido desse órgão gerou um enorme tumulto, que ofuscou ou mesmo apagou o brilho que o locutor insistia em depositar no Circuito.

Toda a volta ao redor do Dique, na categoria triciclo, foi liderada por Oscar de Freitas. Quando chegou no final do percurso, no entanto, Freitas encontrou o local por onde deveria passar barrado por um cone. Sendo assim, seguiu o caminho direto e fez o retorno mais à frente. Porém, quando Luciano Oliveira, até então o segundo colocado, passou pelo mesmo lugar, o cone havia sido retirado e ele acabou rodando por volta de 300 metros a menos que Freitas. O que permitiu que conseguisse ultrapassar a linha de chegada antes que Oscar Freitas e ganhar o primeiro lugar na competição.

Grave erro

Mesmo o ocorrido tendo sido responsabilidade da SET, a Confederação Baiana de Atletismo não teve dúvidas para quem dar o troféu de campeão. Segundo Antônio Paranhos, diretor geral do evento, o vencedor é sempre aquele que cruza primeiro a linha de chegada e, nesse caso, foi Oliveira. Mas até que se chegasse ao veredicto final, houve muita discussão e insatisfação entre “os dois campeões”, ambos considerando justo e inquestionável que a premiação de vencedor fosse dada para si. Venceu a lei da FBA.

Oscar Freitas teve de se contentar com uma segunda colocação e com um aumento satisfatório na sua premiação em dinheiro. Apesar de manifestar-se contrário à decisão da FBA, aceitou o veredicto, observando: “É muito frustrante a gente se dedicar a uma competição, treinar, saber que venceu, mas não ser reconhecido por causa de um erro alheio. Isso desestimula a gente”.

Um dos competidores, que solicitou à reportagem condição de off, disse que esse contratempo foi somente uma prova da desorganização do evento como um todo: “Para se ter uma idéia, dedicaram uma premiação de 500 reais para uma terceira categoria na competição, a de triciclo ou profissional feminino, mas não observaram o fato de que não havia mulheres com triciclo para concorrer”, afirmou.

Antônio Paranhos não nega que houve um grave erro por parte da SET, mas procura reduzir ou mesmo anular o papel de vítima de Freitas. Para ele, todos os participantes haviam sido anteriormente informados sobre qual seria o percurso. Paranhos afirma que Oscar errou ao não entrar no lugar certo, embora sinalizado como fechado pela SET, já que mesmo havendo o cone, o espaço era suficiente para que ele passasse. Argumento este que foi rigidamente replicado pelo competidor prejudicado: “Isso não existe. Se havia algo fechando a entrada, é óbvio que deveria haver algum motivo. E se eu tivesse entrado ali e fosse desclassificado?”.

Após muita conversa, a solução encontrada pelos organizadores e patrocinadores foi tentar calar as vozes insatisfeitas e as críticas com uma uniformização dos prêmios, que passaram para o valor de 1 mil reais para todos que chegaram em primeiro, segundo e terceiro lugares; e o sorteio de brindes. Segundo Freitas, a bagunça que se tornou o evento só reflete a situação em que se encontra o atletismo para deficientes em Salvador. “Nós sequer temos local adequado pra treinar”, disse. “Atualmente estou treinando na ciclovia da orla, mas é muito difícil. Tenho que disputar espaço com as bicicletas. E há até quebra-molas!”.

Atletas fazem queixas de descaso e preferências

Marivaldo Brito e Antônio Valter, que também competiram no Circuito, informaram que treinam nas ruas, lado a lado com os carros. Antônio Valter frisa a enorme dificuldade que os esportistas deficientes encontram para competir em outras cidades e Estados. “Não há patrocinador. Eu já cheguei a vender chaveiros em sinaleiras para conseguir dinheiro para fazer uma competição em outro Estado porque não havia e não há quem financie hotel, alimentação e nem mesmo as passagens”, contou.

Os atletas afirmam que a Associação Baiana de Atletas Deficientes (Abade) faz “muito pouco ou quase nada” para auxiliá-los. A Abade nem mesmo participou do II Circuito de Deficientes Sobre Rodas. Quem marcou presença foi a Associação Baiana de Deficientes Físicos (Abadef), sob representação de sua presidente, Luiza Câmera. “O esporte em si não é uma área de atuação específica da Abadef, mas nós estamos apoiando o evento por reconhecer que é fundamental para o auto-estima do deficiente”, declarou Câmera. Ela acrescenta ser o esporte um modo significativo de inclusão social. Em sua opinião, iniciativas como o Circuito realizado no Dique “são notórias. Mas não fazem sentido se não estiverem seguidas por outras iniciativas, que merecem igual destaque”.

Apesar de Luiza Câmera mostrar à repórter inúmeros projetos e iniciativas visando melhorar a situação do deficiente físico em Salvador, alguns associados não concordam plenamente com ela. Pedindo anonimato alegando “receio de retaliação”, um dos participantes do II Circuito de Deficientes Sobre Rodas afirmou em que há uma espécie de apadrinhamento quanto à distribuição dos benefícios conseguidos pela Abadef. Segundo a fonte, Luiza Câmera “varia entre boa ou má vontade” em atender às solicitações, a depender de quem estiver pedindo. Mesmo a distribuição das cadeiras de rodas concedidas pelo Governo seria guiada pela simpatia da presidente, declarou a fonte.

“Isso é a política de crítica de pessoas que desconhecem os trâmites governamentais ou não percebem que nossa luta é cobrar do Governo benefícios não para um, mas para todos. Pessoas insuficientemente envolvidas para saber que lutamos para que todos os ônibus comprados a partir de 2004 sejam adaptados. Não sabem que estamos buscando junto ao governo cadeiras de rodas mais resistentes e em maior número. São alheias às ações da Abadef”, desabafou Luiza Câmera.

Artistas “como quaisquer outros”

Dupla de dançarinos em cadeira de rodas faz show sensual durante circuito esportivo.

Com um cigarro na boca, uma roupa vermelha e sensual e uma expressão de desejo, Ninfa Cunha e seu parceiro e coreógrafo, Déo Carvalho, mostraram à platéia do II Circuito de Deficientes Sobre Rodas que deficiente também tem vícios e vida sexual. “Eu não sou exemplo para ninguém. Nem quero ser. Sou uma pessoa como qualquer outra e faço tudo o que todos fazem. E quando estou no palco, eu não estou ali para expor minha deficiência. Estou como uma artista, mostrando meu trabalho”, disse. “Eu e Déo trabalhamos muito com temas do cotidiano e com tabus. Falar da sexualidade dos deficientes, de gravidez etc., ainda é um tabu. E nós transformamos isso em dança. E buscamos passar para a platéia um sentimento que não seja pena. Provocamos o público”, afirmou.

Ela e seu parceiro, além de outros grupos artísticos, se apresentaram logo após o fim da competição dos atletas, mediante um cachê, segundo ela satisfatório. Ninfa conta que, apesar do campo para apresentação de dança com deficientes estar crescendo, é um progresso lento. “Muitas pessoas entram em contato conosco para que façamos apresentações. Mas são raros os casos em que continuam a conversa quando informamos que cobramos uma remuneração. A impressão que tenho é que eles consideram um favor, um ato social louvável abrir espaço para que um deficiente mostre seu trabalho. E não é isso. Nós somos artistas como qualquer outro”, disse.

 

 
     
 
 

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