Amália não mora mais aqui
 
 
Três meses depois da queda de avião com R$ 5,5 milhões que “sumiram”, tensão continua em Maracangalha, distrito de município localizado a 1 hora de Salvador
 
     
 
Carla Visi e Fernando Conceição
Da equipe de reportagem
 
     
 
 
Carla Visi
 
 
 
     
 
     
 

“A gente nunca viu um avião cair. Então fui lá ver”, relembra Edilson Santos da Curz, 29 anos, apelidado Alumínio, dois meses e meio depois da queda de um bimotor carregado supostamente com 5,56 milhões de reais no pacato e ex-tranqüilo povoado de Maracangalha. Numa música de 1956, Dorival Caymmi imortalizou a localidade, distrito do município de São Sebastião do Passé, caminho de Candeias, cerca de uma hora distante de Salvador. Dois pilotos e dois seguranças de uma empresa transportadora de valores morreram.

“Primeiro a gente viu o avião voando baixo com um barulho estranho”, conta Alumínio. “Depois aquele estrondo. Fui lá porque fiquei curioso. Ninguém chegava perto com medo do avião explodir. Tinha um pedaço de corpo cabeludo, a gente pensou que era lombo de um animal. Depois um pedaço de braço. Alguém se aproximou e viu dinheiro espalhado por todo canto. Aí todo mundo voou em cima. Os mais sabidos pegou o dinheiro e sumiu no mundo. Eu peguei um monte num saco plástico, com aqueles tabletes de 10 reais. Todo mundo pegou. Logo chegou helicóptero, carro de polícia e todo mundo fugiu”.

Domingo, 20 de maio de 2007, a equipe de reportagem do JF visitou a região e conversou com moradores das localidades de Sapucaia, onde fica a propriedade rural na qual o avião se espatifou, e vizinhanças como Quibaca e centro de Maracangalha. Medo, desconfiança e queixas abatem a outrora pacata comunidade, perdida nos ermos do esquecimento e da pobreza depois que a Usina de Açúcar Cinco Rios foi fechada há mais de 30 anos pela poderosa família Mariani, cujo capital foi redirecionado para o Pólo Petroquímico de Camaçari.

“Como eu sou cristão [evangélico], ao pegar o saco eu senti o sangue vivo nas notas, mas o dinheiro não estava melado de sangue. Eu fui um dos primeiros a pegar. Quando a polícia veio, disse que tinha minha foto em um radar”. Amedrontado e ameaçado por policiais, que horas depois foram à sua casa e o levaram num automóvel sob a mira de revólveres para “dar voltas pela BR”, Alumínio devolveu todo o dinheiro. “Pegaram o saco e os homens que me levaram não se entendiam mais um com o outro dentro do carro. Um disse que ia dar sumiço na gente. Na cadeia de São Sebastião mandaram dizer uma coisa e na de Candeias mandaram eu dizer outra”.

Depois que o libertaram, contam os vizinhos, Alumínio andou vagando às carreiras pelas áreas da fazenda Sapucaia, na localidade de Pindoba, gritando que tinham uns cachorros [da polícia] correndo atrás dele. Alucinação. Não havia cachorro nenhum nem mais policiais. Perguntado se sua fé cristão não impedira que ele saqueasse o avião, respondeu à reportagem que sabia estar fazendo uma coisa errada mas que “a carne é fraca”.

Moradores dizem que dinheiro trouxe ‘maldição’ ao povoado

16 moradores suspeitos de pegar os 5 milhões foram presos “por um dia e uma noite”. Quem pôde devolver, devolveu, mas oficialmente até agora a polícia anuncia que só resgatou 500 mil reais. Por isso, até agora moradores dizem viver “aterrorizados” porque continuam as investidas de pessoas estranhas “ou mascarados”, principalmente durante a madrugada. Foi o que ocorreu quatro noites antes de o JF visitar o local.

Uma casa foi invadida durante a madrugada de 16 de maio por oito homens armados que quebraram tudo, cavaram buracos na sala procurando o dinheiro supostamente enterrado e saíram atirando. “Nós ouvimos o barulho, mas de noite ninguém é doido de sair de casa”, conta dona Roquelina Nascimento de Souza, vizinha de dona Ana, a vítima. “Daqui de casa a gente só ouvia ‘puf! puf!’. Deram dois tiros dentro da casa. Disseram que voltavam depois”.

Se encontraram ou não dinheiro ou se dona Ana estava escondendo-o, dona Roquelina não sabe. Tampouco dona Ana ficou para contar a história. Fechou a casa e dia seguinte abandonou tudo, foi embora com a família. Um dos netos adultos criados por dona Roquelina pegou 1 mil e 800 reais do avião, quantia que ela guardou num armário e devolveu quando a polícia foi procurá-la. “Eu ia comprar era comida com o dinheiro. Desde aquele dia eu não durmo, de noite fico acordada com meu netinho pequeno. Quando um cachorro late a gente já fica com medo”.

“Avião maldito, caiu no lugar errado”, lamenta-se Mariana dos Santos, 23, mulher de Alumínio, ao lado da filha Emily, 1 ano em abril. “Se caísse na cidade, não tinha mal. Mas foi cair num lugar pequeno, atrapalhou a vida da gente”. Mariana conta que foi levada, junto com seu bebê, por dois homens que bateram à sua porta na mesma noite depois que prenderam seu marido. Disse que foi ameaçada, enquanto os homens seguiam pelas estradas, mas que implorou para não ser morta. Garante que vai largar o marido, pegar suas duas crianças e mudar-se para outra região, para a casa de parentes.

Seu Júlio dos Santos, cuja idade não sabe mas garante “que com menos de 80 não morre mais”, 14 filhos, fala que não foi importunado, mesmo morando em uma casa sozinho na Sapucaia. Puxador do afamado grupo de samba-de-roda de Maracangalha, observa: “Com essa idade que tenho, sempre morando aqui, nunca vi uma miséria dessas. Está sendo um desacerto danado. Esse avião caiu aí, tirou o sossego. Essa ‘fama’ nunca mais vai acabar”.

No exato local em que o avião se espatifou, na Fazenda Nossa Senhora das Candeias, ainda restam destroços como pedaços de poltronas, cintos, fuselagem, acrílico de janelas. A reportagem encontrou também um pedaço de osso descarnado, parecendo ser de parte de fêmur de alguma das vítimas. A fazenda está com novo caseiro, pois o antigo também “sumiu” depois do saque ao dinheiro do avião. Solange Pereira, 30, ao lado de seus três filhos, informa que seu marido foi contratado pelo dono da fazenda “faz um mês”. Indagada se não teme ataques de estranhos, confessa: “Eu não queria vir por conta desses comentários. Mas meu marido estava há dois meses desempregado e foram atrás dele”.

Investigações ainda não foram concluídas

Quase três meses depois da queda do bimotor da Bahia Táxi Aéreo (Bata) em Maracangalha, as investigações ainda não estavam concluídas: nem as policiais nem as da Força Aérea Brasileira (FAB). A reportagem tentou ouvir por duas semanas, por telefone e por e-mail, o dono da Bata, Ricardo Coelho, mas ele não se pronunciou. Uma funcionária da empresa, que se identificou como Cristiane, comentou que “parece que seu Ricardo não quer mais investir nesse negócio de táxi aéreo. Ficou chateado com esses acidentes”.

Morreram no desastre dois colegas de Cristiane. Um deles, o comandante do vôo, José Leão Bezerra de Araújo, ela diz que “conhecia bem. Era muito brincalhão, era uma pessoa extrovertida, temos algumas fotos dele em festas de comemoração com a gente”. Quanto ao co-piloto, Romildo Moraes dos Santos, Cristiane informa que “conhecia pouco porque era novo na empresa”.

A reportagem procurou, mas não conseguiu falar com nenhum representante da Nordeste Segurança da Bahia, companhia responsável pelos 5,5 milhões de reais declarados como provenientes de bancos e supermercados de Petrolina para Salvador. Dois funcionários dessa empresa também morreram no desastre, Arnaldo Dantas Ferreira e Genésio Barbosa Lima.

Oficialmente a FAB, em resposta a perguntas feitas pelo JF nos dias 28 e 31 de maio, em telefonemas e e-mails para o Centro de Comunicação Social da Aeronáutica, localizado em Brasília, declarou: “No momento, não é possível adiantar informações sobre elementos da investigação técnica, tendo em vista que os trabalhos não foram concluídos”. Diz ainda a nota da FAB:

“A investigação de acidente aeronáutico realizada pela Aeronáutica tem como objetivo a prevenção, de acordo com o Anexo 13 da Convenção de Chicago, da qual o Brasil é signatário como membro da OACI (Organização de Aviação Civil Internacional). Nesse trabalho, que é realizado de modo independente do procedimento policial, há a formação de uma Comissão de Investigação de Acidente Aeronáutico e seus integrantes trabalham em três diferentes frentes: fator material, fator humano e fator operacional. No momento, a investigação encontra-se em andamento para a identificação dos fatores contribuintes para a ocorrência. Por se tratar de uma investigação técnica, o prazo de término é o prazo necessário para a elucidação dos fatos que podem, de algum modo, ter levado ao acidente. É importante destacar que essa apuração não aponta culpa, pois seu objetivo é a elaboração de recomendações que irão ajudar a elevar os níveis de segurança da aviação”.

O tenente Charlan, do quartel da Aeronáutica em Salvador, disse à reportagem depois do acidente foi enviada uma equipe composta por oficiais de segurança de vôo ao local. “Os dados foram recolhidos e encaminhados ao Ceripa (Centro Nacional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáutica) de Recife, que tem 90 dias para produzir um relatório sobre os fatores contribuintes para a queda da aeronave”. O prazo pode ser estendido. (CV e FC)

Distrito quer centro cultural

A Maracangalha cantada por Dorival Caymmi desde 1956 é um pequeno distrito ente os municípios de Candeia e São Sebastião do Passe, região do recôncavo baiano. Ali a Usina Cinco Rios, fundada em 1912, chegou a produzir 300 mil sacas de açúcar por ano e a absorver mão-de-obra de mais de 1 mil trabalhadores. A usina foi responsável por 75 anos de movimentação na vila. Dela hoje só restam as paredes em ruínas, sua chaminé e restos de maquinário em processo de deterioração.

Miguelzinho, presidente da Associação de Moradores e Amigos de Maracangalha, informa que existe um projeto de restauração do espaço para criação de um centro cultural, em tramitação no Ministério da Cultura, “Isso aqui é um patrimônio histórico. Se a gente tivesse pensado antes, teria evitado que depredassem o local. Levaram muito do maquinário”, fala, enquanto mostra como funcionava o processo de recebimento e moagem da cana que, diz ele, presenciou em sua meninice e adolescência.

Miguelzinho nasceu e cresceu na vila, mas hoje, professor da rede estadual de ensino, é vice-diretor de uma escola na Fazenda Grande do Retiro, em Salvador, onde mora. Ele foi o contato da reportagem para facilitar o acesso aos moradores de Maracangalha, que desconfiam de toda e qualquer pessoa estranha que apareça no local fazendo perguntas. Junto com ele foi possível percorrer toda a área e verificar que até mesmo o pequeno comércio da vila foi prejudicado depois da queda do avião.

Seu Bosco, dono do Armazém Brasileiro, fundado desde os bons tempos da usina, declarou que diminuiu o movimento dos visitantes e compradores, depois do acidente. “As pessoas ficam com receio de gastar e se tornar suspeitas”, observou. O movimento da vila nos finais de semana, quando era costume haver movimento de pessoas até de outros municípios, caiu. Há um grupo de samba de roda famoso, uma capela (de Nossa Senhora da Guia) e até uma filarmônica, chamada Cinco Rios, dirigida pelo maestro Fred Dantas. Coisas assim podem fazer com que em breve o trágico episódio da queda do avião se torne mais um “causo”, entre muitos na conversa dessa gente. (CV e FC)

 

 
     
 
 

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