‘A morte passou por perto’ é o título do segundo filme de Stanley Kubrick (o primeiro: ‘Fear and desire’), um exercício no ‘thriller’, realizado em 1954. Poderia ter este título aplicado a mim, pois estive nesta condição em dezembro de 2007, 28 precisamente, quando sofri violenta intervenção física para a implantação de duas pontes de safena depois de ter tido, em novembro do mesmo ano, um grave enfarte agudo do miocárdio. Passados os dias, consolidada a operação, que faz, hoje, quando digito, exatos 86 dias, feridas cicatrizadas, a constatação de estar vivo e a verificação de que a sobriedade excessiva faz mal a saúde, considerando que, largados os vícios – fumar e beber com certa ganância e ansiedade, resta a mediocridade do dia a dia, o tédio. Chego a concordar com Maiakovski, quando disse que era melhor morrer de vodka do que de tédio.
Mas, no auge da cirurgia, cheguei a estar com ela, a Implacável, e, para não perder a oportunidade, fiz uma entrevista com a morte especial para o Jornal da Facom.
- Pretende me levar, senhora?
- Ainda vou lhe dar uma chance, Setaro, creio melhor você no mundo por mais algum tempo para sofrer mais o processo existencial, pois viver é lutar e sofrer.
- Leve-me, senhora, para o seu aconchego...
- Não vou lhe dar este gosto.
- Mas então, considerando que tenho 56 anos, poderia me estender a vida até quando?
- Vai viver, caro Setaro, mas uma vida restrita, sem sua querida cervejinha, seu cigarro tão amado, e contrita dentro de uma dieta rigorosa, pois todo cuidado é pouco: se brincar, as pontes entopem, e entupidas, você tem ‘viagem’ marcada para o meu território sombrio e lúgubre
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- É verdade. Será que vale a pena viver sem tomar uma cerveja, sem fumar, e sem comer a maniçoba de Dona Nair?
- Quem é esta Dona Nair, que não conheço, e Morte que sou?
- Uma eximia cozinheira na arte de fazer boa maniçoba, prato típico do Recôncavo baiano e de alto teor de gordura. Para uma pessoa já com problemas de colesterol, a ingestão de um prato pode encaminhar o cidadão para o seu território, minha boa senhora. Verdade que não sou glutão, boa Morte. Como para viver e não vivo para comer, embora gostasse de viver para beber e fumar. Aprecio, no entanto, carnes, churrasco, mal passadas, com sangue. Sou, neste particular, um carnívoro.
- Não está achando, Setaro, que a conversa anda meio esquisita? Digo-lhe que a cirurgia já está quase no fim e, daqui a algumas horas, você será devidamente ‘desentubado’ e viverá, dou-lhe esta certeza. Preciso ir para levar outras pessoas. A Morte não pára nunca, principalmente neste mundo tão povoado e tão miserável.
- Mas senhora, eu...
Acordei, entubado, respirando artificialmente, pulmões ainda parados. Mas estava vivo, apesar da morte ter passado por perto. Como no filme de Kubrick.
André Setaro, professor da Facom/UFBA, é crítico de cinema e colunista deste jornal. E-mail: setaro@ufba.br