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Ou paga, ou corre

Agiotas contratam cobradores de aluguel e pressionam devedores, que podem pagar até com a própria vida.

 

Leonardo Azevedo e Aguirre Talento
Da equipe de reportagem

 
Leonardo Azevedo
Policial que é contratado para fazer cobranças.
 

“Geralmente a gente chega no local, na casa da pessoa, se apresenta e cobra a dívida. A pessoa diz que não vai pagar, a gente invade, leva uma televisão, um DVD ou um vídeo, pra dar um susto, e diz que vai voltar de novo. Depois disso elas costumam pagar, porque têm medo, vêem a gente armado e sentem o terror. Aí vão e pagam”.

É assim que Jorge [nome fictício], policial militar, descreve a reação daqueles que já o encontraram, à sua porta, cobrando a dívida que tinham com outras pessoas.

Utilizadas como último recurso por quem já não acredita que vai reaver a quantia que lhe é devida, essas cobranças se dão através de ameaças e, eventualmente, agressões físicas. Trata-se, na verdade, de fazer a outra parte “entender a mensagem”: a dívida existe e é melhor pagá-la. O que mais contribui, no entanto, para a existência dessa prática, segundo o advogado Francisco Ribeiro, é o fato de que tais dívidas são resultantes de relações comerciais informais, o que dificulta em muito a realização de uma cobrança através da Justiça. “Além disso, a descrença no sistema judiciário impede as pessoas de procurarem um advogado para ajudá-las”.

Apesar da pouca visibilidade, as cobranças de aluguel são uma prática comum, e Jorge é apenas um dos muitos soldados que as praticam. O que os leva a tal prática são os baixos salários. “Muitas vezes, os policiais que não têm carro, não têm moto, não têm transporte próprio, estão ali combatendo o ladrão e pegando o mesmo ônibus que ele. A polícia não dá um financiamento pra você, pra você financiar um carro”, diz Jorge. E completa: “Você vê, um policial federal ganha 7 mil reais... Básico, fora as extras. Eu creio que uma pessoa dessa não tem mais nenhum interesse em fazer esse bico.”

Policiais civis também estão envolvidos nesse sistema. A corregedora da Polícia Civil, Jorvane Andrade, 36, estima que, por ano, ocorrem aproximadamente 15 casos de processos disciplinares, cujas penas variam de suspensão por 30 dias até a expulsão. Este número é ainda mais baixo no interior. “Lá, a maioria das pessoas acredita que delegado e policial pode tudo. Então, acha que cobranças e determinadas ações que alguns policiais fazem estão baseadas em lei e não denunciam. Seja por medo ou desconhecimento.”

O tráfico de drogas é outra coisa que aparece como um impulsionador dessa atividade. O delegado José Arnaldo Santos, da 20ª Circunscrição Policial, diz não ter dúvidas. Apesar da falta de dados estatísticos, os seus 26 anos de serviço lhe permitem estimar que 30% dos crimes de homicídio registrados são resultantes da cobrança de dívidas, sendo que mais da metade seria relacionada a dívidas com o tráfico.

Ciganos atuam com políticos e até gerentes de bancos

Não apenas policiais militares ou civis estão envolvidos com as cobranças. Determinadas comunidades ciganas têm nessa atividade o seu principal sustento, aliando-a, inclusive, com a prática da agiotagem. O cigano Luiz, 52 anos, residente em Lauro de Freitas, está sempre disposto a realizar empréstimos, a juros que podem chegar a até 30%. “Tudo depende da quantidade, quanto maior o valor, menor os juros”. Ainda assim, não se nega a realizar cobranças para terceiros, mantendo a mesma “tabela”.

O cigano Medeiros, chefe da comunidade do município de Miguel Calmon, a 360 quilômetros de Salvador, visitada pela reportagem, também reconhece o empréstimo a vereadores e outras pessoas “importantes”, além da realização de cobranças para terceiros. “A pessoa tem um mercado e está com uma dívida grande. Ela vem até nós, conversa com nós, acerta um preço e nós vamos conversar com a outra parte”. Medeiros informa que recentemente sua equipe foi a Brasília “conversar” com um devedor que devia 26 mil reais. Segundo o cigano, o problema não foi resolvido porque o devedor já estava morto.

O cigano Luiz admite ter negociado com vereadores e até gerentes de bancos. “Muitas vezes pra pegar um empréstimo no banco é aquela dificuldade toda, por isso até o gerente vinha conversar comigo. E não era quantia pouca, era 15, 20 mil reais”, conta ele.

Para o promotor-ouvidor do Ministério Público, José Gomes Brito, há 30 anos na área penal, essas atividades podem diminuir, mas nunca vão acabar. Ele aconselha àqueles que receberam ameaças de um cobrador a procurar imediatamente o Ministério Público e apresentar uma denúncia. Tanto para ele, quanto para o delegado Arnaldo Santos, é difícil que apurações sejam feitas na delegacia, já que possíveis policiais envolvidos são acobertados por seus colegas.

Ainda assim, as denúncias são raras. “Geralmente as pessoas não denunciam, porque sabem que estão erradas, que estão devendo mesmo”, afirma o soldado Jorge. E completa: “Até hoje, eu não soube de nenhum caso em que um colega denunciou um outro”.

 
 
 
   
 
 
   
   
   
 
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Universidade Federal da Bahia. Jornal da Facom. 2007.