Toda terça-feira, por volta de 6 da tarde, já é possível ver uma movimentação diferente da habitual nas imediações da fonte luminosa, Praça da Sé. As pessoas que vão se aproximando e se cumprimentando vestem camisas largas, tênis, calças esportivas ou bermudões. Na cabeça, o boné, gorro ou uma faixa revelam: são fãs ou integrantes da cena hip hop de Salvador. A reunião acontece pra divulgar o break, um estilo de dança que, juntamente com o rap, o grafite e as batidas musicais, compõem os desdobramentos artísticos da cultura hip hop, movimento importado para o Brasil na década de 80, direto dos guetos novayorkinos.
Segundo Ananias, o B-boy (breaker boy - dançarino de break) responsável pela roda semanal desde 2002, o primeiro grupo de break de Salvador surgiu em 1989, no periférico bairro do Lobato, área suburbana da cidade. Desde então a dança, de acordo com ele, tem sido mais vista e conhecida, se expondo em praças e outros locais públicos como estações rodoviárias. Mas nem só de movimentos sincronizados é feito o break. Ananias revela sua peregrinação pelas escolas da cidade, conversando com crianças e adolescentes, ensinando-lhes um pouco do que sabe e mostrando para os amantes do break que além da arte em si, preocupar-se com os problemas do seu bairro e estar disposto a ser agente de pequenas mudanças sociais faz parte do processo de ‘redenção’ proposto pelo movimento hip hop.
A contrapartida social é uma bandeira quase unânime, proclamada por b-boys, MCs (mestres de cerimônia – os que disparam suas idéias em versos rimados) e DJs (responsáveis pelas batidas musicais). DJ Branco, assessor de comunicação da Rede Aiyê Hip Hop, uma congregação de grupos e núcleos de Salvador e do município de Lauro de Freitas, já promoveu debates, como o que deu origem ao projeto Salvador Grafita: Poder Público, Grafiteiros e Pixadores – Um bombardeiro de Idéias, em 2005. DJ Bandido promove no bairro do Nordeste, à frente do grupo Quilombo Vivo, escolinhas de rap e grafite, e estende os seus conhecimentos a escolas de Salvador e de outros Estados. Negro Davi, junto com a posse Família de Pernambués promoveu em janeiro de 2006 o show beneficente “Hip Hop Solidário”, arrecadando alimentos (o ingresso para a festa era um quilo de alimento não perecível), doados para a Creche Nossa Senhora da Luz.
Gangsta e mídia
Mas nem todos acompanham a roda na mesma sintonia. A responsabilidade social e a identidade dos hip hoppers com os problemas tematizados nas canções de rap se confrontam com o fenômeno da conversão do estilo em produto mercadológico. É o chamado Gangsta Rap, a face mais comercial do rap – uma explosão nos Estados Unidos - que traz letras glorificando a violência e a vida bandida, e clipes nos quais os cantores são sempre cercados de carros, mulheres, correntes de ouro e muito luxo.
Perguntados se essa tendência já chegou ao Brasil, e mais particularmente a Salvador, Bandido, Branco e Ananias foram taxativos: nunca precisaram da mídia massiva para continuar com a ação social. Branco revela, porém, que chegou a avançar negociações com um produtor ligado a uma produtora de artistas da axé music, para gravação e lançamento de um disco reunindo rappers soteropolitanos. Não deu certo, mas diz que talvez os meios de comunicação possam ser usados beneficamente pelo hip hop, como instrumento acelerador de mudanças, e cita o episódio da veiculação (em outubro do ano passado) do documentário “Falcão – os meninos do tráfico”, idealizado pelo rapper MV Bill. Bandido também já foi sondado algumas vezes por grandes produtoras locais desse segmento. Apesar de ser contratado para animar festas destinadas a jovens com situação financeira bem melhor do que a sua, ainda não foi dessa vez que Bandido se rendeu às favas da mídia.
Se a influência do mercado implica um afastamento da postura politicamente engajada, eles não souberam responder. Traição para os mais militantes, o sucesso fonográfico pode ser, para os menos radicais - como chamou a atenção o Negro Davi - a chance daqueles saídos da miséria conseguir sustento e conforto através da música. Seja qual for o motivo, a polêmica continua. |