A Justiça anunciou no mês de agosto a obrigatoriedade do Sistema Único de Saúde (SUS) de custear a cirurgia de readequação sexual. Em Salvador, o Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), também conhecido como Hospital das Clínicas oferecerá serviço a partir de 2008. A cirurgia é destinada aos transexuais, indivíduos que não se reconhecem em seus órgãos sexuais e sentem-se convictos de pertencerem ao sexo oposto.
A operação consiste numa vaginoplastia, com a criação de uma vagina a partir dos órgãos sexuais masculinos do paciente, ou numa faloneoplastia, com a implantação de um pênis, feito com músculos do antebraço, e de testículos, criados com silicone. No primeiro caso, é construído um canal vaginal, que será revestido com a pele do pênis para assegurar a sensibilidade do novo órgão. Já os testículos, esvaziados, são transformados nos pequenos e grandes lábios da transexual.
Para a adequação completa do corpo do indivíduo ao gênero com o qual se identifica, além da redesignação sexual, também são feitos procedimentos como implante ou retirada das mamas, cirurgias nas cordas vocais e intervenções para acentuar traços masculinos ou femininos. Atualmente, estão sendo definidos os serviços disponíveis no Hospital das Clínicas. Segundo previsões do médico Hilton Pina, chefe do setor de ginecologia do hospital e integrante da equipe que atenderá os transexuais, será criado um ambulatório específico para esta demanda.
A equipe de profissionais será multidisciplinar, contando com urologistas, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, cirurgiões plásticos e ginecologistas. Depois da etapa de identificação dos serviços, será oferecido treinamento aos profissionais. “A equipe toda será mobilizada para um dos centros de referência desse tipo de cirurgia no Brasil, como São Paulo, Rio Grande do Sul ou Rio de Janeiro”, explica.
Acompanhamento médico
Para terem acesso à cirurgia, os transexuais serão acompanhados durante dois anos pela equipe médica responsável pelo diagnóstico de transexualidade. Os critérios para a seleção dos indivíduos foram estipulados pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução 1652/2002: idade mínima de 21 anos, acompanhamento psicoterapêutico ou psiquiátrico mínimo por dois anos e não existência de transtornos de personalidade. Após a cirurgia, os pacientes serão assistidos por um ano, no mínimo. “O acompanhamento é fundamental, principalmente o apoio psicológico para ajustá-lo ao seu sexo e à sociedade”, afirma Pina.
A primeira operação de transgenitalização feita legalmente no Brasil foi em 1998, no Hospital das Clínicas da Universidade de Campinas, em São Paulo. O procedimento foi autorizado um ano antes pelo Conselho Federal de Medicina como cirurgia experimental. Existem diversas técnicas desenvolvidas e aplicadas com sucesso em vários países. As neo-vaginas e neo-pênis, como são chamados os novos órgãos sexuais, apresentam funcionalidade e bons resultados estéticos, assegura o ginecologista, embora admita uma maior facilidade na criação do primeiro.
Em geral, a “cirurgia de transgenitalização” é associada apenas à operação de mudança de sexo, embora todo o processo de readequação sexual implique em várias intervenções médicas e cirúrgicas, que ajudam o transexual a explicitar fisicamente a identidade de gênero que já vive internamente. Segundo Pina, a disponibilização regular dos implantes de silicone, de fundamental importância para o processo de reajustamento corporal do transexual, é um desafio que os hospitais deverão enfrentar. “Isto é uma dificuldade no setor público, porque o implante de silicone geralmente é considerado uma cirurgia estética”. No caso dos transexuais, será tratado como procedimento cirúrgico reparador.
Refugiados do próprio corpo
“Sou mulher, do sexo feminino, do gênero feminino, com práticas vivenciais do sexo e gênero feminino, que eventualmente nasci com um pênis entre as pernas. Se a concepção agregada às palavras sexo, gênero, sexualidade e orientação sexual não correspondem a este meu ponto de vista, isso é um problema dos teóricos que as estabeleceram, e não um problema meu”, conta Barbara Graner, 33 anos, transexual, tentando explicar o inexplicável.
A transexualidade, dentre as diversas facetas da sexualidade humana, certamente é a mais intrigante, incompreendida e talvez a mais sofrida. Transexuais colecionam histórias de preconceito, conflitos internos e familiares. Com a chegada da adolescência, Barbara viu seu corpo mudar na direção contrária ao sexo que já vivenciava psicologicamente. Desesperada com a natureza teimosa, que insistia em aprisioná-la num corpo masculino, recorreu ao hospital da Universidade de Campinas. Não encontrando a ajuda que necessitava, decidiu extrair os testículos por conta própria. “Planejei quase tudo, injetei anestesia e cortei com a tesoura”, conta. Apesar de todos os riscos que correu, não se arrepende. “Foi uma das ações mais corajosas e acertadas que tomei na vida”.
Para Millena Passos, 29 anos, presidente da Associação de Travestis e Transexuais de Salvador (Atras), a vivência transexual também trouxe suas dores. Saiu de casa aos 15 anos e enfrentou quase dois anos de prostituição. No colégio, só tinha paz nas primeiras semanas de aula. Logo que a lista dos matriculados chegava, a hora da chamada transformava-se num suplício. Quando descobriam que aquela morena alta era, civilmente, um homem, começavam as brincadeiras, xingamentos e propostas sexuais. “Minha sala virava uma platéia de homens falando: é viado! É viado!”. Quando os colegas se aproximavam, era sempre com intuito sexual. Millena acabou abandonando os estudos no segundo grau.
Metamorfoses
A adolescência é uma época cruel para os transexuais. É geralmente neste momento que muitos deles começam seu processo de transformação corporal, numa tentativa de controlar o desenvolvimento do seu sexo físico. Aos 16 anos, Fernanda da Silva, 36 anos, transexual paraense, começou a tomar hormônios com a ajuda da mãe, que é enfermeira. Atualmente, já operada, completou sua metamorfose. “Graças a Deus, hoje sou curada psicológica, corporal e espiritualmente”. Mas apesar de ter alcançado o seu sonho, admite que não foi fácil. “Tinha muitas crises existenciais e muitos confrontos familiares e sociais, principalmente na escola”, relembra.
Millena Passos usou hormônios por conta própria, com a ajuda de amigos e travestis conhecidas. “Uma vai ensinando a outra”, explica. Ela nunca sofreu conseqüências graves, mas muitos casos terminam em tragédia. Call Castro, transexual baiana, 33 anos, teve problemas com silicone. “Sempre usei hormônios para aumentar as características femininas secundárias. O meu desespero foi tão grande que usei silicone líquido para aumentar os seios. Quase morri”.
O preconceito e a falta de informação estão presentes mesmo na classe médica. Edvaldo Couto, pesquisador, professor da Universidade Federal da Bahia e autor do livro “Transexualidade - o corpo em mutação”, aponta a discriminação como principal motivo para que as cirurgias não fossem feitas nos hospitais públicos. “Algumas cirurgias são simples, como correção de queixo ou nariz para adequá-los a formas mais femininas [no caso de transexuais que querem virar mulheres]. Na maioria das vezes elas não eram feitas por preconceito mesmo, para não atender uma determinada população bastante estigmatizada e por falta de informação médica”, opina Couto.
Fernanda atenta para a importância da relação entre médico e paciente. “Não adianta esta norma [que obriga o SUS a custear a cirurgia de readequação] se não há profissionais especializados e qualificados para lidar com pessoas transexuais”. Além de uma equipe especializada no tratamento dos casos, é essencial que esses profissionais saibam lidar psicologicamente com a situação.
Corpos trocados
Entendidos como homens presos em corpos de mulheres ou vice-versa, transexuais consideram seus órgãos sexuais um defeito físico passível de correção. “Existe uma não-identificação com a genitália, que às vezes se transforma em rejeição ou ódio por causa da exclusão social e pelo que o órgão representa na sociedade”, explica Bárbara. Desta forma, como homens e mulheres com órgãos sexuais trocados, considera-se mais correto o uso das expressões transexual masculino para indivíduos do sexo feminino que se sentem homens e transexual feminino para o inverso. Adota-se, igualmente, o termo “readequação”, no lugar de “mudança de sexo”, já que a cirurgia proporciona uma adequação das genitais ao sexo psicológico do paciente.
“Sempre me senti menina, sendo menina. Não dá pra, apenas a partir do pênis, definir meu sexo físico como masculino. O meu sentimento era independente de qualquer coisa. Não precisava brincar de boneca para sentir-me menina. Sentia-me menina jogando bola, empinando papagaio e andando de bicicleta”, relata Barbara.
Não existe consenso na explicação da origem da transexualidade. Médicos, estudiosos e especialistas no assunto defendem posições diferentes. Alguns acreditam num fator biológico determinante, que leva ao desajuste entre sexo físico e espiritual. Já outros defendem motivações psicológicas, explicadas por razões tais como o crescimento da criança em meio ao desejo dos pais de terem um filho do sexo oposto. Mesmo entre os transexuais, essa explicação varia muito. A maioria deles, entretanto, tem optado por considerar a transexualidade como uma doença, cuja cura seria a cirurgia de readequação social. A transexualidade é vista, nesta perspectiva, como um transtorno de identidade sexual, registrado no Código de Doenças Internacional.
Com a definição de uma doença físico-psicológica, caso de saúde pública, torna-se possível seu custeamento pelo SUS. “Eu, como cidadã contribuinte, pagadora de impostos, tenho o direito de ter minhas demandas em saúde (todas elas, e não apenas a cirurgia) devidamente atendidas pelo sistema de saúde que ajudo a bancar”, conclui Barbara Graner. Em estatísticas do Conselho Federal de Medicina, um em cada 40 mil homens é transexual. Entre mulheres, esse fenômeno é mais raro: somente uma em cada 80 mil. Segundo dados da Atras, acredita-se que os transexuais representem 10% da população de travestis, estimada em menos de 10 mil em todo o país e de 250 a 500 residentes na Bahia.
Políticas públicas
No processo judicial, a União, posicionando-se contrária à solicitação do Ministério Público de que o SUS custeasse a operação de redesignação sexual, questionou a legalidade do procedimento, alegando o caráter experimental da cirurgia e a impossibilidade de recursos orçamentários a demandas individualizadas. Para Edvaldo Couto, a transexualidade é uma questão de saúde pública. “É um problema social, de pessoas desajustadas fisicamente e com problemas psicológicos. Isso gera problemas com a família, com a escola, com instituições diversas”, pondera. Esses desajustes físicos contribuem para empurrar tais pessoas para profissões sub-qualificadas, autônomas ou geralmente associadas às ‘minorias sexuais’, como as atividades relacionadas à beleza.
Tatiana Lionço, psicóloga, consultora técnica do Ministério da Saúde, no Comitê Técnico Saúde da População GLTB (Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais), do programa governamental Brasil sem homofobia e pesquisadora da ANIS - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, acrescenta que, ao ser contemplada pelo SUS, a transexualidade deve ser encarada como uma questão social e a readequação sexual, um direito humano fundamental. “É necessário compreender a saúde não apenas do ponto de vista biologizante ou epidemiológico, mas, sobretudo, em suas determinações sociais”, afirma a pesquisadora.
Os transexuais comemoraram a conquista. Millena Passos pretende procurar o Hospital das Clínicas para submeter-se ao procedimento de redesignação sexual. “Tenho que fazer a cirurgia para adequar o corpo à alma”. Em países como Equador, o procedimento particular custa de R$15 mil a R$20 mil. Nos Estados Unidos, pouco menos de R$30 mil. Devido aos altos custos, poucos transexuais podem pagar pelo procedimento. Edvaldo Couto conclui: “então o que sobra para a maioria? Uma marginalidade completa, muito suicídio e muita mutilação. A gente tem um drama social que envolve muitas pessoas”.
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Jornal da Facom - Ufba 2007
Trocando de corpo
Janira Borja e Tiago Canário
“Transexuais e travestis são gêneros diferentes, têm problemas diferentes”, esclarece Millena Passos. Barbara Graner é ainda mais enfática: “é fundamental ressaltar a distinção entre a vivência da travestilidade e da transexualidade. São distintas uma da outra. Não andam juntas nem são siamesas políticas, ou xifópagas sociais, ou as gêmeas da diversidade sexual”. A associação, constantemente feita, provoca desconforto à maioria das transexuais. Para Edvaldo Couto, essa necessidade de distinção é o um dos motivos que levam muitas transexuais femininas a se comportarem como verdadeiras ‘amélias’, com uma vida conservadora e de vivência extrema de traços sociais femininos.
Segundo Couto, uma travesti usa roupas femininas por satisfação emocional; uma transexual feminina, porque se sente mulher e deseja ser socialmente aceita desta forma. A travesti tem prazer em se estimular sexualmente, em utilizar sua genitália. A maioria das transexuais, por sua vez, prefere ignorar esta parte do seu corpo. “É o excesso que me foi dado pela caprichosa natureza”, define Bárbara, referindo-se aos seus órgãos sexuais.
“Travestis não apresentam conflitos entre mente e corpo”, explica Couto. O travestismo é a condição de homens ou mulheres que se vestem e assumem características físicas e psicossociais atribuídas ao sexo oposto, embora esse prazer não signifique a negação de seu sexo genital. Os transexuais, por sua vez, são convictos de seu pertencimento ao outro gênero, por isso anseiam adaptar sua aparência, em todas as suas expressões, ao seu sexo psicológico.
A travesti é uma pessoa que, nascida menino, ainda assim busca construir-se mulher, sem prescindir de sua identificação com o masculino, explica Tatiana Lionço. “São indivíduos que sustentam, em seu sentimento identitário, a dupla referência dos sexos - um homem/mulher, ou uma mulher/homem”. Com os transexuais, a identificação se dá com apenas um dos sexos. É o que Bárbara Graner esclarece: “A vivência da transexualidade se caracteriza por uma identidade de gênero confortavelmente definida e claramente afirmada como masculina ou feminina, tendo órgãos genitais eventualmente não-correspondentes a essa identidade”.