Embora ainda haja grandes discussões no país a respeito da ampliação da legalização do aborto, pessoas como Fernanda*, 26 anos, não hesitam em procurar Maria*, 37 anos, para comprar clandestinamente a droga Cytotec, com a finalidade de provocar aborto. Apesar de não ter sido desenvolvida com esse objetivo, a medicação é usada sistematicamente como recurso abortivo. Indicada para o tratamento de úlceras estomacais, o uso do medicamento (misoprostol) tornou-se comum com a descoberta, por parte dos usuários, de suas propriedades abortivas e expurgatórias. Ou seja, após ingerido, o misoprostol provoca contrações sistemáticas do útero, expulsando o feto. A bula do produto alerta claramente para a sua contra-indicação por mulheres grávidas ou que buscam engravidar.

Pílula dos meses seguintes
Kelly Hosana e Daza Moreira

Facilidade ao encontrar medicamento abortivo faz crescer número de usuárias

Com a proibição da venda desse medicamento, o comércio tornou-se clandestino e em torno disso há um mercado paralelo onde facilmente, e com preços majorados, se consegue obter o produto, à margem da fiscalização falha.

A venda do medicamento foi proibida em maio de 1998, pela portaria 344/98. Desde a sua a interdição, não existe produção legal do cytotec no Brasil.Sua negociação é facilitada graças ao ingresso no país, por vias ilegais, através da fronteira com o Paraguai. A droga entra no país custando cerca de R$ 0,75 (a drágea) e, após passar por vários revendedores, chega às mãos dos consumidores pelo valor em torno de R$20 a pílula, dependendo do local da venda e da quantidade de pessoas envolvidas no processo de distribuição. Vale ressaltar que de modo geral para a concretização do aborto são exigidos, no mínimo três comprimidos, os quais, além de serem ingeridos são introduzidos no canal vaginal para acelerar

as contrações uterinas expulsando o feto. Nos casos em que a gravidez já está avançada, a quantidade exigida é maior, assim como, são maiores os riscos para a mulher.

Para comprar pílulas de Cytotec, basta recorrer ao computador mais próximo, uma vez que, na Internet, dezenas de sites oferecem o produto, mediante a cobrança de valores exorbitantemente maiores que os praticados pelos vendedores "boca a boca" que fazem o comércio ilegal nas farmácias ou fora delas.

Fernanda, a personagem de codinome apontada acima, conta que já recorreu ao produto várias vezes e diz que nunca o utilizou com mais de três meses de gravidez. Diz ainda que já ajudou várias amigas a fazerem o mesmo: "certa vez, uma colega queria abortar com cinco meses. Ela chegou, ficou com o jejum de tempo necessário (8 a 10 horas antes de aplicar o remédio), recebeu a medicação deitada e assim continuou até começar a sentir as dores". O aborto foi "bem sucedido". Fernanda acrescenta que, após a aplicação da medicação, geralmente as pessoas tomam chás de cravo, sene, espinho cheiroso e outras ervas que ajudam na limpeza dos expurgos da gravidez. Por experiência própria, Fernanda, mãe de dois filhos, relata que a dor sentida nesse tipo de aborto é, muitas vezes, maior que a dor do parto normal. "Parece que você tá brigando com o seu próprio corpo", comenta.

Médica especializada em ginecologia e obstetrícia, Denise Ferreira de Souza, atuante na área há 23 anos, afirma já ter atendido diversos casos de mulheres que procuraram o Hospital Manoel Vitorino devido a complicações causadas pelo uso do medicamento. Geralmente, as pacientes são induzidas a informar as causas do aborto para facilitar os procedimentos médicos. O médico não tem como saber se o aborto foi causado pela administração do Cytotec, exceto em casos nos quais se encontra resíduos da droga no canal vaginal. Ainda segundo Denise, a facilidade da compra do medicamento aumentou o índice de abortos, porém diminuiu o número de mortes por conseqüência deste processo, já que o uso deste remédio pode ser considerado o método mais seguro se comparado a outros procedimentos abortivos como sondas, aplicação de ácidos etc.

No IPERBA (Instituto de Perinatologia da Bahia), Iacira Magalhães afirma que o misoprostol é liberado exclusivamente em ambiente hospitalar com o objetivo de auxiliar em procedimentos em que é preciso dilatar o colo do útero para fazer curetagem após aborto espontâneo.

Quanto às implicações para a mulher, a droga pode causar perfuração do útero e esterilidade irreversível em conseqüência da curetagem das paredes uterinas, além de provocar longas hemorragias que podem levar à morte. Outra conseqüência comum em abortos caseiros é a permanência, no corpo, de restos placentários e fetais que acabam por provocar processos inflamatórios de difícil tratamento, causando altos índices de mortandade materna por septicemia (infecção generalizada). Boa parte dessas mulheres vão em busca de tratamento em maternidades públicas de Salvador.As mais procuradas são IPERBA e Manoel Vitorino, Climério de Oliveira e Tsylla Balbino.

Estudos no âmbito genético ainda estão em fase de desenvolvimento quanto às conseqüências do misoprostol em abortos mal sucedidos, conforme explica a geneticista Kátia Edni Coelho do Hospital Sarah Salvador. Os estudos relacionados aos efeitos teratogênicos (implicações que modificam as formas e funções de embriões em desenvolvimento) causados pelo medicamento começaram a ser estudados devido à observação de alguns médicos clínicos, obstetras e geneticistas quanto à incidência de alguns padrões de má formação que antes eram raros e que com o passar do tempo, tornaram- se mais freqüentes. A partir daí, esses profissionais deram início a uma série de estudos e pesquisas estabelecendo uma possível correlação entre o uso do misoprostol e a má formação de fetos em caso de abortos não concretizados.

Ainda segundo Kátia, os estudos atuais indicam que a medicação, ao induzir a contratibilidade uterina, acarreta algum tipo de sofrimento ocasional vascular no embrião, atrapalhando, assim, o seu desenvolvimento natural, podendo causar do bebê a síndrome de Moebius, entre outras anomalias. A síndrome de Moebius é caracterizada por paralisia facial, atrasos no sistema neuro-locomotor e pé torno congênito. Esse é um dos distúrbios que se tornou mais freqüente na análise de casos-controle em pesquisas envolvendo o misoprostol, ou seja, esse é um tipo de anomalia que esta tornando-se cada vez mais habitual, principalmente no Brasil, onde o índice do uso do cytotec como abortivo é abrangente. O Hospital Sarah atende diversos pacientes com problemas neuro-locomotores, dentre eles, algumas crianças com deficiências adquiridas devido ao uso do cytotec pela mãe no período da gravidez.

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Jornal da Facom - Ufba 2007