Seja para acumular mais experiência profissional ou para o ganho financeiro, estudantes pré-formandos de Medicina e Odontologia exercem a profissão sem serem supervisionados por médicos e dentistas habilitados. Para poderem se manter nos dispendiosos e longos cursos da área de saúde ou para suprir a falta de mais experiências práticas na sala de aula, os alunos se defendem argumentando que a realidade os obriga a se envolver em atividades ilegais. Previsto na grade curricular, o estágio obrigatório só é regulamentado a partir do 7º semestre para Odontologia e do 8º para Medicina, quando os alunos já cursaram as disciplinas básicas. Ainda assim, há alunos que, não habilitados, já atuam em clínicas e hospitais públicos e privados, muitas vezes sem supervisão. A prática expõe pacientes à falta de experiência e de aparato técnico dos estudantes.

Tipificado como crime, de acordo com o artigo 282 do Código Penal brasileiro, o exercício ilegal de medicina, arte dentária ou farmacêutica, acarreta pena de 6 meses a 2 anos de prisão. No caso de estudantes, pode gerar ainda a não inclusão destes nos conselhos regionais, indispensável para o exercício legal da profissão. Em Salvador, o Ministério da Educação reconhece três faculdades aptas a ministrar os cursos de Medicina e Odontologia: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) e a Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), com cerca de 330 novos estudantes de medicina e 230 de odontologia ingressos por ano. Este contingente dá margem a um alto número de possíveis exercícios irregulares, dada a quantidade de alunos que pleiteiam vagas no mercado de trabalho.

Quase profissionais - Cursando o 7º semestre na Escola Bahiana de Medicina, Marcelo Reis garante nunca ter atuado sem supervisão, mas tem conhecimento de que colegas atuam na venda de plantões, uma das práticas ilegais. No caso, médicos pagam a alunos para cobrirem seus turnos e atuarem em seu nome nos hospitais. Reis diz que os estudantes precisam acumular algumas experiências antes de chegarem ao semestre no qual estarão aptos a estagiar. Para ele, é preciso vivenciar situações que a faculdade não proporciona. Segundo ele, os alunos que evitam o exercício irregular, geralmente se voluntariam em clínicas para poderem presenciar alguns procedimentos. “O pessoal corre atrás para poder ver algumas coisas. Geralmente um colega te indica uma clínica e a gente vai lá nos horários vagos pra ver os casos acompanhados por um médico”, conta.

A necessidade de ampliar os conhecimentos também é apontada por X. M.*, aluna do último semestre de Medicina na UFBA. Ela diz, entretanto, que muitas vezes as circunstâncias do curso forçam os estudantes a fazerem parte de práticas irregulares, como foi o seu caso. X. M. explica que, por ser um curso difícil de se ingressar devido à alta concorrência (a maior da UFBA, com relação de 27,8 candidatos por vaga em 2007), muitos entram com mais de 20 anos. Por isso, grande parte dos estudantes já está em idade de precisar garantir um sustento financeiro inclusive para pagar as altas despesas do curso. Porém, as oportunidades encontradas, como o acompanhamento de procedimentos citado por Reis, não são remuneradas. O próprio estágio obrigatório, quando os alunos se tornam internos de algum hospital, também não é remunerado. Atualmente X. M. estagia como interna no Hospital das Clínicas e, mesmo arrependida e afirmando não ter se sentido à vontade quando clinicou de forma irregular, acha que o modelo do curso dificulta a vida dos alunos. “Agora, no internato, eu preciso me dedicar em tempo integral. A gente acaba ficando sem tempo para fazer mais nada, muito menos para arrumar um trabalho e ganhar dinheiro”.

X. M. relata que foi ao interior do estado para poder trabalhar, pois lá os hospitais da rede pública costumam contratar os estudantes como estagiários sem utilizar nenhum processo de seleção e sem questionar a qual semestre o aluno pertence. “Sinto vergonha pelo que fiz, mas eu precisava ganhar dinheiro. Infelizmente os médicos também eram culpados, pois geralmente não estavam por perto para auxiliar, principalmente durante a troca de turno no plantão. Os estudantes ficavam com o carimbo do médico e tinham permissão para prescrever receitas e liberar pacientes”, conta.

Esquema político - Além do exercício irregular, alunos*, dentre eles X. M., denunciam práticas ilegais promovidas por políticos nas quais se envolveram. Esse é o caso de um ex-vereador de Salvador e atual deputado federal**. Tal político costumava, durante a campanha, recrutar estudantes de medicina, independente do semestre do curso, muitos ainda inexperientes, para irem a bairros periféricos de Salvador distribuir prescrições de exames e receitas de remédios, dentre outros serviços. “Essa prática existe, pelo que eu sei, há pelo menos 12 anos. O estudante fica lá em um carro do político, sozinho, acompanhado de dois funcionários, sem nenhuma habilitação, que ficam distribuindo ‘santinhos’, enquanto o aluno passa prescrições de exames conforme o pedido das pessoas. Em um dia, a gente chegava a atender mais de duzentas. Era tudo feito visivelmente para ganhar votos.”, conta um estudante de Medicina. Para fazer o serviço, ele diz que os alunos recebiam R$ 100 por uma jornada que ia de 7 da manhã às 17 h.

Conflito ético - O médico Antônio Nery Filho, formado pela UFBA em 1970, e professor da disciplina de Ética Médica na mesma universidade, diz ter plena consciência dessas práticas, assim como os conselheiros do Conselho Regional de Medicina - Bahia (Cremeb - BA). Ele opina que não há justificativa para o exercício ilegal e não há circunstância que conceda ao aluno o direito de ter uma conduta antiética. “Ora, se você não tem um automóvel e precisa dele para ir ao trabalho, isso lhe dá o direito de roubar o carro de alguém? E a responsabilidade pelos danos, onde fica?”. Ele utiliza o exemplo dos estudantes americanos que, para financiar os estudos, trabalham em outro turno em bares e afirma ele próprio ter servido como taxista quando ainda era um graduando. Nery diz que a própria universidade oferece aos estudantes alternativas remuneradas, como as bolsas de iniciação científica para a participação em grupos de pesquisa. Além disso, ele sabe que “o exercício ocorre, de certa forma, constante” e culpa a própria classe médica: “Se não houvesse oferta para esses tipos de prática, os estudantes não teriam essa opção”.

Nery problematiza o fato de não haver denúncias. Segundo ele, os pacientes de clínicas e serviços públicos (onde geralmente ocorrem as práticas ilegais) sofrem por ignorar seus direitos. Muitos não sabem que podem denunciar, ou também não têm ciência de onde prestar a queixa. A grande questão é que os pacientes não têm noção de quem os atende e, portanto, não podem identificar se estão sendo atendidos por um aluno. Muitas vezes não é possível avaliar se o médico é ou não um estudante.

Para tentar minimizar drasticamente estes hábitos, Nery, com o apoio do Cremeb, implantou uma mudança curricular nos curso de Medicina da UFBA. A disciplina de Ética Médica era lecionada apenas no 1º semestre. Agora, o estudante terá uma disciplina relacionada à ética em cada semestre durante os 6 anos do curso. As matérias obrigatórias que compõem o “Eixo Ético Humanístico” serão indispensáveis para a formação do estudante a partir do ano de 2007. Com isso, pretende-se conscientizar e reeducar os alunos no que concerne à ética. “Acho que estas práticas não vão acabar. Mas espero que se reduza, e muito, o exercício ilegal. É também um modo de tentar melhorar as relações dos estudantes com os pacientes e dos estudantes com os próprios estudantes”.

No Conselho Regional de Odontologia - Bahia (CRO-BA) a situação não é diferente. Nos últimos anos não houve nenhuma denúncia de exercício da profissão, porém o odontólogo Antonio Fernando Pereira Falcão, assessor da presidência do CRO-BA e professor da UFBA, diz ter conhecimento da prática: “infelizmente não podemos fiscalizar se não temos maiores informações sobre locais e estudantes que praticam esse exercício abominável”. O custo para os pacientes é o mesmo de dentistas profissionais. Estudantes de ambas as áreas alegam que uma das únicas maneiras de obter experiência e algum dinheiro é executando os procedimentos dessa forma.

O estudante de odontologia I. Z., último semestre, revela que mais da metade de sua turma já clinica sem acompanhamento há, pelo menos, mais de um ano. No geral, estes alunos costumam trabalhar principalmente em clínicas de bairros periféricos onde têm a liberdade de não serem supervisionados. Questionado sobre o conflito ético, I. Z. afirma ter que trabalhar para dar continuidade ao curso. “Odontologia é um curso muito caro, trabalho para concluí-lo”, diz.

A prática, execrada pelos códigos de ética das profissões, expõe involuntariamente pacientes a riscos sem o devido conhecimento. No campo odontológico, a falta de experiência e aparato teórico impedem a atuação em situações de emergência que podem acarretar problemas físicos e psicológicos, pois uma simples intervenção cirúrgica mal sucedida pode não ser revertida.

*A identidade dos estudantes foi preservada para manter o sigilo das fontes.
**A identidade do parlamentar foi preservada dado o caso de denúncia. Como não pôde ser encontrado para dar sua versão e por este ser um jornal laboratório, foi preferível não veicular seu nome.

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Jornal da Facom - Ufba 2007

Quase profissionais
Eduardo Ross

Estágio - Sancionada em dezembro de 1977 pelo então Presidente Ernesto Geisel, a Lei nº 6.494 dispõe sobre estágios de estudantes do ensino superior e médio profissionalizantes. A prática, comum no meio acadêmico universitário, justifica-se pela exigência do mercado de trabalho por profissionais com experiência em sua área de atuação. Sob supervisão, o estágio faz parte do currículo acadêmico e é obrigatório para todas as áreas. Segundo a lei, o acordo deve ser firmado entre o estudante e a entidade conveniada com mediação obrigatória da instituição de ensino.