Se o Arrocha é célebre por acelerar a batida da seresta e apimentar as lamúrias do homem traído, o surgimento do ritmo Atocha, no subúrbio ferroviário de Salvador, promete aquecer ainda mais a fórmula de sucesso trazida de Candeias. Idealizado por Johnny D’Victor, versão ítalo-americana do ex-cobrador de ônibus João Francisco da Silva, o novo gênero já faz corar semblantes mais conservadores e palpitar outros tantos corações apaixonados nas festas de clube de Paripe e Periperi.

Johnny reconhece a paternidade do Arrocha no subgênero criado por ele. Não perde a chance, porém, de apontar distinções: “O Arrocha é repetitivo. É sempre a ‘mulher me traiu’, ‘mete o pé na bunda dele’, ‘ele é corno’... Já a minha música é mais ousada, sensual. Eu conto tudo o que acontece nos shows”, diz, após revelar a verdadeira inspiração de sua canção Calor nas Coxas. Na equação sonora do Atocha, desfilam os habituais clichês do estilo musical do qual é tributário. Banda composta por sax, guitarra e teclado, versões pegajosas de megahits internacionais, flerte com a lambada e fixação em passar o telefone de contato para shows entre um verso e outro identificam instantaneamente a filiação.

“A diferença é a velocidade. No Arrocha, a medida da velocidade do teclado é de 135, já eu, boto 146. Pra me acompanhar, tem que saber dançar mesmo”, desafia Johnny, segredando o pulo-do-gato de sua inovação. Enquanto a populosa música brega espalha artistas aos magotes por todo o interior nordesti-

Bloco do eu sozinho
André Uzêda
Rodrigo Sombra

no, o cantor afirma ser impossível alguém tocar Atocha como ele. Em outras palavras, é ele o único artista do gênero. “Ninguém nunca acelerou como eu”, gaba-se, num típico cacoete de piloto de Fórmula 1.

O barulho provocado pelo Atocha ainda não ultrapassa as cercanias da periferia e aparelhagens de som das boates de Simões Filho. De acordo com o locutor da rádio comunitária Maré FM, Pedro Menezes, “o pessoal tem ligado muito e pedido a música Piriguete e o cover de Hotel Califórnia cantados por Johnny”, o que confirma o sucesso. Mesmo satisfeito com o burburinho local, puxado pela venda de cd´s piratas e performances ao vivo, as ambições de Johnny D´Victor  já flutuam na estratosfera. “Eu já deveria estar na televisão, ter aparecido na Rede Globo há muito tempo. Mas eu vou. Sei que posso ir porque eu sei como chegar lá...”, divaga o cantor.

OK. O Atocha pode ser mais rápido, sensual e ter público cativo. Mas, apenas isso é o bastante para alçá-lo à condição de novo gênero? Seria o ritmo singular a ponto de estabelecer o reconhecimento imediato do público? Ou estaria Johnny vendendo gato por lebre? Para o radialista e produtor musical Jackson Mendes, não existe

inovação. Segundo ele, a nova sensação do subúrbio apenas percorre as variações rítmicas do Pagorrocha e da Pisadinha, sem a estas nada acrescentar. A avaliação de Hugo Santana, guitarrista da banda Furacão da Seresta, é mais enfática. “O Atocha é um plágio do Arrocha, o que ele fez foi só mudar o nome”. E provoca: “Ele pode até ter criado o Atocha, mas ‘a tocha’ ainda tá apagada, tem que lembrar a ele de acender”. No outro lado da celeuma, a tiete Adriana Maciel não desconfia da autenticidade de seu cantor favorito: “É completamente diferente. A música de Johnny tem mais embalo, mais agitação. É um som mais de piriguete mesmo”.

Lennon, Piriguete e o evangelho 

Do alto de seus 44 anos, Johnny parece dar de ombros a esse tipo de polêmica “conceitual”. Perseguições de ex-mulheres desconsoladas, turnês a serviço de deputados caloteiros, passagens tumultuadas pelos vocais da Banda Vôou e o acidente automobilístico que, segundo ele, retardou a explosão iminente do Atocha, o talharam um homem calejado. “O pessoal botava na minha cabeça que depois de Silvanno Salles, quem ia estourar era eu”, lamenta o cantor. Há mais de um ano tratando um trauma na coluna cervical, Johnny não pôde seguir o rastro de sucesso do Rei do Arrocha, com  quem, involuntariamente, deixa entrever certa rivalidade. “De vez em quando, ele [Silvanno] estacionava seu Astra preto na porta dos meus shows e ficava lá me assistindo. Só não sei o que ele queria ali, mas com certeza era aprender alguma coisa”, intui.

Ironicamente, contratou a banda do rival para gravar seu último álbum, A sensação do Atocha. Na contramão da maioria dos grupos arrocheiros, acostumados mais a requentar antigos sucessos do cânone brega do que a apostar em suas próprias composições, Johnny assina 6 das 15 faixas do disco, incluindo achados como Gozou Gozou e Dente de Vampiro. Apesar da bola fora ao encaixar no repertório a manjadíssima Winds of change (do quinteto alemão Scorpions), o cantor vira o jogo no cover de Stand by me, do álbum Rock And Roll de John Lennon. Com o ex-beatle, inclusive, não demora a tecer comparações: “Lennon tinha uma mente futurista. É um cara muito parecido comigo em termos de liberdade”.

Filho de mãe evangélica e irmão de pastor, Johnny não despreza em suas canções o dilema de quem vive sob o fogo cruzado entre cânticos gospel e “apelativas” canções populares. Os versos de seu maior sucesso, Piriguete, apontam um norte para o conflito moral da musa Juliana (Outro dia eu encontrei com a Juliana / Ela estava com um shortinho muito sacana/ Perguntei por quê que ela não se converte/ Ela disse que preferia ser Piriguete...). Cronista das noites de seresta, o astro-solo do Atocha investe em expressões de duplo sentido com um quê de Axé anos 90, como em Calor nas Coxas (Olha a Jibóia Dura! / Dura! Dura! / Olha a Jibóia Dura!), e, apesar de esquivar-se, ainda recorre à corneria de mesa de bar no brega progressivo Passa o Tempo (Passa o tempo / Passa a guerra / mas no mar fica você / Se o passado é comum / Presente vulgar/ Uma rosa perdida nos caminhos / Por onde eu passar).

Produção autônoma e distribuição inusitada

A possibilidade de gravação de um disco próprio por artistas alheios aos esquemas tradicionais do mercado fonográfico já não configura mais um fenômeno pontual. O acesso a mídias alternativas e a explosão da pirataria ampliaram horizontes antes confinados aos expedientes das grandes gravadoras. Desembolsando parte de sua aposentadoria como cobrador, alugando dvd´s informalmente ou contando com a ajuda de patrocínios esporádicos para bancar shows e cópias de discos, Johnny acompanhou o sopro dos novos ventos e encontrou na produção independente uma alternativa capaz de garantir sua sobrevivência na cena musical.

Com uma estratégia de divulgação bastante peculiar, sustentada pelo boca-a-boca nos círculos do Arrocha, envio de cd´s a passageiros errantes no Terminal Rodoviário de Salvador e confiança no poder multiplicador dos serviços piratas, Johnny acredita ser possível driblar todos os entraves na sua escalada rumo ao estrelato. Portador de paralisia infantil, 1,63m de altura e rosto enrugado como as dobras de um acordeom, o cantor seria um peixe estranho na rede da indústria ‘oficial’ do disco. O estilo musical escolhido para seguir carreira também não parece ajudar sua inserção no mainstream. Para o autor de Piriguete, os artistas da música brega são boicotados nos grandes veículos de comunicação, o que minimiza chances de expressão artística e comercialização de produtos.

A marginalidade no mercado cultural muitas vezes obriga músicos a optarem por artimanhas nem sempre politicamente corretas. Em A sensação do Atocha, o paradoxo entre os créditos no encarte, que atribuem backing vocals a Márcia Ronister e Ester Freitas, e a ausência do mínimo sinal de voz feminina na audição do disco, levanta suspeitas sobre o quanto de verdade e o quanto de artifício existem na criação do novo gênero. Johnny justifica o jogo de cena como uma “explicação aos leigos que me perguntavam como eu conseguia gravar duas vozes ao mesmo tempo”. A despeito de qualquer juízo sobre as manobras de autopromoção adotadas por Johnny D´Victor, seu impulso de fazer música e de criar soluções para fazê-la circular reforçam o poder do artista periférico e a formação de novas cenas locais.

Johnny D´Victor excursiona atualmente com a banda de apoio Desejos de Amar. Telefones para contato: 8207-0423 / 3397-6042.


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Jornal da Facom - Ufba 2007