Se a Lei Áurea aboliu a escravatura, a abolição ficou apenas no papel, pois continua patente na sociedade brasileira. Mas vou ficar apenas num ponto dessa escravidão, que é o trabalho doméstico, o qual, com raras e honrosas exceções, caracteriza-se pela subserviência, pelo salário ínfimo e pelo suor. O que se segue é uma constatação memorialista de fatos. Se for fazer um juízo valorativo, o que vou contar revela a falta de solidariedade e de respeito em relação ao ser humano.
Na década de 60, a classe média vivia em casas e, em Salvador, poucos eram os edifícios de apartamentos. Em 1949, surgiu o Edifício Oceania, no Farol da Barra, nos moldes dos bons prédios do Rio de Janeiro. Houve rebuliço entre os soteropolitanos que iam ao Farol, vindos de bairros distantes para apreciá- lo, como se fosse um espetáculo circense. Neste mesmo ano, Salvador, que tinha dois ou três hotéis habitáveis, viu aparecer o elegante Hotel da Bahia, um acontecimento para a cidade.
Mas estou pegando um atalho e me desviando do assunto. Que é sobre as domésticas – há um filme interessante sobre elas, As domésticas, de Fernando Meirelles, o mesmo de Cidade de Deus. No meu tempo, as domésticas eram chamadas de graxeiras, termodesonroso epejorativo. Pessoas humildes epobres, geralmente dormindo em quartinhos escuros eapertados nos fundos das casas.Com o passar do tempo, se tornaram auxiliares do lar.
A família de classe média preservava as filhas virgens para que somente fossem possuídas depois de casadas com algum bom partido. Os rapazes, para sexuar, no dizer do Dr. Elsimar Coutinho, tinham que se contentar com os prostíbulos da cidade, numerosos e para todos os gostos, e com as graxeiras, que iniciavam muitos jovens dessa classe, obrigadas à servidão do sexuar sob ameaça, inclusive, da perda de emprego. Os pais, tacitamente, concordavam com o fato de que seus filhos as procurassem. Mais importante era a preservação da virgindade das moças.
“Eu comi a graxeira de sua casa!”, dizia um rapaz a outro, estabelecendo uma certa disputa. Mas havia as mais recatadas, que sonhavam com seu príncipe encantado e sofriam o assédio, a perseguição e, mesmo, a perda do emprego. Na sociedade machista dos anos 60, o que valia era a virilidade exposta, não importando se as ditas graxeiras, fossem humilhadas.
Esse tempo passou, embora a condição da empregada doméstica continue grave. Mas a liberdade sexual de hoje não permite mais o assédio às chamadas graxeiras que, inclusive, não mais assim são chamadas. Houve, porém, uma época na qual eram o escoadouro da virilidade masculina dos jovens de classe média, a mais imbecil de todas, em minha opinião. Embora pertencente a ela sob o prisma da renda, sou um outsider. Sim, cheguei a me permitir essa monstruosidade e conheci, na juventude, para minha vergonha, algumas graxeiras.