Todas as manhãs, Maria de Fátima enfrenta o longo percurso entre Fazenda Grande, onde vive com dois filhos, e Morro do Gato, bairro onde trabalha. Antes das 6h, o ponto de ônibus está cheio de trabalhadoras domésticas como ela, que aguardam condução para seus locais de trabalho, onde chegam a tempo de ainda servir o café da manhã. Pela janela do ônibus, a mudança da cidade é facilmente percebida: o traçado caótico de casas pequenas e apinhadas, ruas estreitas e minúsculos estabelecimentos comerciais vão lentamente dando lugar a prédios e vias mais largas. Já no Morro do Gato, somente Fátima e outras empregadas domésticas sobem a ladeira ainda deserta a essa hora do dia. Os edifícios residenciais dominam a paisagem. Em
Fazenda Grande, as ruas já estão movimentadas de transeuntes, comerciantes e trabalhadores.minúsculos estabelecimentos comerciais vão lentamente dando lugar a prédios e vias mais largas. Já no Morro do Gato, somente Fátima e outras empregadas domésticas sobem a ladeira ainda deserta a essa hora do dia. Os edifícios residenciais dominam a paisagem. Em Fazenda Grande, as ruas já estão movimentadas de transeuntes, comerciantes e trabalhadores.

A rotina de Fátima é bem parecida com a de 120 mil trabalhadores domésticos em toda Salvador e Região Metropolitana. Exercem diariamente um trabalho pouco reconhecido e quase invisível. Servem o café da manhã, limpam a casa, arrumam, lavam, passam, cozinham e tomam conta das crianças. No fim do dia, voltam às suas casas e encaram uma realidade completamente diferente. Vivem a condição ao mesmo tempo privilegiada e perversa de conectar dois mundos. Classes sociais, padrões de consumo, hábitos, perspectivas e sonhos dividem patroas e domésticas. Fátima reconhece estas diferenças. Há cinco anos trabalhando numa mesma casa, a realidade dos bairros é uma das coisas que mais chamam sua atenção. “Lá onde eu moro tem mais movimento. Se eu for assaltada aqui não posso nem gritar porque não tem ninguém na rua, a não ser os porteiros”. A geladeira frost-free que exibe orgulhosa em sua casa foi dividida no cartão da patroa. A relação entre os vizinhos também é diferente. “Eles não procuram se envolver. Aqui no Morro do Gato é cada um na sua e acabou”.

Para o sociólogo Roberto Albergaria, as trocas culturais são desiguais. “As influências se dão muito mais de cima para baixo. Isso pode ser observado nos hábitos de consumo adquiridos pelas empregadas, por exemplo, de eletrodomésticos e roupas”. Marinalva de Deus Barbosa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Salvador (Sindoméstico), conta que grande parte das empregadas passam a desejar o modo de vida das famílias para as quais trabalham. “Muitas delas querem usar o celular, as roupas que a patroa usa e vão se endividando naquele sonho de consumo”. Albergaria afirma que a convivência entre duas culturas tão diferentes pode ser devastadora. “Há uma extrema proximidade micro social e afetiva, mas uma distância cultural enorme, o que causa uma confusão psicológica, principalmente nas adolescentes que vêm do interior para trabalhar na capital. Essa contradição destrói a identidade da pessoa”, declara.

Meninas do interior
Marinalva, que veio da zona rural de Maragojipe aos 14 anos para trabalhar numa casa, teve que lidar com um mundo completamente desconhecido. “Eu não sabia fazer nada, nem olhar panela de pressão. Tudo era um choque, o elevador era um choque, eu não sabia atravessar a rua para ir ao mercado”. Marinalva, que não tinha registro de nascimento e pegava ônibus pela cor, aprendeu a ler e teve que cuidar de uma casa ainda criança. O pagamento, inferior a um salário mínimo, era feito à irmã e esporadicamente. Nas casas onde trabalhou, ela aprendeu a cozinhar, fazer o trabalho doméstico e recebeu apoio para estudar. Depois de 20 anos de profissão, ela não esqueceu sua origem. “Eu consegui manter minha identidade. Eu sou pobre, não posso ter o que eles têm, mas posso viver bem. Eu consegui não me deslumbrar com aquelas coisas, nem desejei usar o que eles usam”, conta a ex-empregada.

Ainda é comum que as famílias mandem buscar meninas no interior para trabalhar em suas casas, com a desculpa de ‘criá-las’. As empregadas chegam ainda crianças e têm que enfrentar responsabilidades de adultos e longas jornadas de trabalho.

História semelhante viveu Anália Mercês da Silva. Com 26 anos de trabalho doméstico, também veio pequena do interior e teve que se adaptar ao modo de vida dos lugares onde serviu. “Tudo que eu aprendi foi com minha patroa. Eu vim da roça e lá a gente não aprende nada”. Há vinte anos trabalhando num mesmo lar, ela acompanhou a história da família, viu o crescimento dos filhos da dona da casa e o nascimento dos netos. Apesar da proximidade inevitável, quando patroa e empregada saem do prédio, pegam elevadores diferentes. Exigência da patroa.

Senzalas Modernas
Anália só sai de casa para comprar o pão pela manhã. Durante o dia, toma a conta da patroa idosa e cuida dos afazeres domésticos. À noite, apesar de assistirem a mesma novela, não dividem o mesmo espaço. Anália fica no quarto de empregada, um ambiente de aproximadamente 6 m2. “Dentro do quarto eu não me sinto bem. A gente fica muito só aí dentro, nesse lugar apertado, ainda mais que eu sou alérgica”, afirma. Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacion

Segundo dados do sindicato, o serviço doméstico é o setor que mais emprega mulheres na capital baiana, que representam 93,1% do total de trabalhadores. O fator racial é preponderante. Das seis capitais estudadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas em São Paulo e Porto Alegre os negros ou pardos não são maioria. Com 91,9% de trabalhadores domésticos afrodescencentes, Salvador apresenta o maior índice do país. A profissão só foi regulamentada na Constituição de 1988, assegurando conquistas como férias, décimo terceiro salário, folga semanal, aposentadoria e licença-maternidade. Apesar disso, o empregado doméstico ainda não tem todos os direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As principais lutas dos sindicatos são o direito ao FGTS obrigatório, regulamentação da jornada de trabalho e formalização do mercado de trabalho.

al dos Trabalhadores Domésticos (Fenatrad), classifica os quartos de empregada como ‘senzalas modernas’. “Essa relação de morar no mesmo local de trabalho acaba com qualquer auto-estima e cidadania. Quando você mora fora da casa dos seus patrões, você convive com outros trabalhadores, pega ônibus, vive a realidade do bairro”.

Os quartos de empregada materializam a situação das domésticas nas famílias: ao mesmo tempo em que estão naquele espaço, não fazem parte dele. “Ao invés de ser o local da privacidade, é o local da privação”, afirma Marinalva. Isoladas em seus quartos, as domésticas são apartadas do convívio da família e amigos. Muitas delas não conseguem estabelecer vínculos nem vida paralela à rotina do trabalho. O direito à habitação própria é uma das lutas do Sindoméstico e da Fenatrad. Residir no local do emprego torna difícil delimitar a jornada de trabalho e estabelecer relações mais profissionais. Imersas no ambiente familiar, os limites entre trabalho e amizade são vagos. Na opinião de Albergaria, “a relação patroa – empregada é um jogo de simulação e sedução recíproco, um simulacro de amizade impossível”.

 

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Álvaro Andrade
Janira Borja