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A natureza não fala

 

Pior desastre ecológico na Baía de Todos os Santos seria “culpa” de fenômeno da própria maré

   
 

Nina Santos
Da equipe de reportagem, em Saubara

 
 
Nina Santos
Na foto, moradores de Saubara, um dos municípios afetados pela mortandade de toneladas de peixe
   
   
 

Morrer de fome ou de intoxicação? Em abril, esse era o dilema vivido pelos pescadores e marisqueiras afetados pela mortandade de peixes ocorrida na Baía de Todos os Santos no início de março. Dois meses depois do início do problema, eles recebiam apenas cestas básicas, em número insuficiente para contemplar todos os afetados. As cestas não davam para a alimentação de milhares de pessoas atingidas por um dos maiores desastres ecológicos do Estado.

A “instrução normativa” do Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, proibindo a pesca estava prevista para ser extinta no dia 29 de maio, mas muitos pescadores já recorriam ao mar desde o início de abril. Quando perguntado sobre o risco de comer o pescado, Antônio Raimundo dos Santos respondeu, aflito: “Tô pescando pra se manter. Vou ao comércio pra fiar, ninguém me fia. Tô arriscado amanhã ou depois prejudicar minha saúde, mas fazer o quê?”.

Quanto às cestas básicas já entregues, os pescadores reclamavam: “Eu tô comendo a cesta que tá dando. Só que num vem carne, nem chouriça, nem nada. É uma porcaria essa cesta”, dizia Gilmar da Conceição, pescador há 26 anos. Genivaldo dos Santos confirma: “A pesca tá proibida, mas ninguém vai agüentar ficar passando fome. Hoje eu vim aqui cercar o pesqueiro pra ver se arranjo um dinheiro”. Ele reclamava da demora em o governo “trazer uma solução efetiva”.

Ajuda insuficiente


O prefeito Raimundo Bolinha, de Saubara, na região do desastre, declarou em abril que o município recebeu 4 mil cestas básicas em duas remessas. Segundo ele, as cestas partiram do Recife para Saubara em duas carretas contratadas por seu próprio município. Bolinha afirma que as duas distribuições de alimentos, realizadas nos dias 25 de março e 7 de abril, foram feitas dando prioridade aos pescadores e marisqueiras cadastrados em uma das três instâncias municipais que controlam a atividade pesqueira: a Colônia de Pescadores Z16, o Sindicato de Trabalhadores Rurais e a Associação de Marisqueiras.

O número de trabalhadores cadastrados nessas instituições soma pouco mais de 1 mil, segundo dados do prefeito. Porém, sabe-se que a quantidade real de pescadores e marisqueiras afetados está em torno de 5 vezes mais do que isso. Assim, o restante das cestas básicas foi distribuído por ordem de chegada aos habitantes do município.

O prefeito alertava que além dos afetados diretos pelo desastre, há também trabalhadores que indiretamente foram prejudicados. É o exemplo dos barraqueiros da região, que além de não poderem vender marisco, sofrem com a drástica queda do turismo. Tradicionalmente o local recebia visitantes principalmente de Salvador e Feira de Santana para finais de semana e feriados.

A atuação da Prefeitura na distribuição das cestas básica não é vista com bons olhos pela população. A reportagem ouviu boatos de que o prefeito teria beneficiado funcionários da Prefeitura e parentes. “A distribuição não aconteceu como o pessoal queria. Teve uns que receberam mais do que os que precisavam”, é o que afirmou Genivaldo dos Santos, capataz da colônia de pescadores. Segundo Beth Wagner, diretora do Centro de Recursos Ambientais (CRA) do governo do Estado, a Prefeitura de Saubara, ao contrário das outras localidades afetadas, apenas complementou a ajuda dada pelo governo.

Além de dificultar a distribuição das cestas básicas, o não cadastramento de grande parte da população afetada complicou também o recebimento do seguro desemprego prometido pelo governo. O secretário de Pesca do município de Saubara, João Gonzaga, afirmou que “ainda têm pessoas irregulares. Elas têm que se deslocar para Santo Amaro para ir à Caixa Econômica Federal e tirar o PIS (Programa de Integração Social) e o NIT (Número de Inscrição do Trabalhador)”. Esses dois documentos são condição básica para que o trabalhador possa ser contemplado com o seguro do governo.

O prefeito Raimundo Bolinha afirma ter procurado empresas como Petrobras, Brasken e Avipal em busca de alguma ajuda para a população. “Até agora não recebemos um quilo de farinha de nenhuma delas. Não recebemos nem resposta”, comenta. “A Petrobras esteve aqui por conta de um gasoduto desse projeto Manati, que atravessa o nosso mar. Nem resposta tivemos da Petrobras. Infelizmente estamos vivendo da misericórdia de Deus, porque ninguém, ninguém nos ajuda”.

Uma outra forma de “ajuda” que se tentou dar aos pescadores foi a compra do peixe que estava estocado em virtude da Semana Santa. A iniciativa foi feita pela Bahia Pesca, órgão vinculado à Secretaria de Agricultura da Bahia. Contudo, a moeda de troca para os peixes estocados foram vales de 2, 4 e 6 reais, a depender da qualidade do pescado. O problema é que não havia previsão para que os vales pudessem ser convertidos em dinheiro.

Empresas são inocentadas

Segundo Beth Wagner, diretora do CRA, nenhuma das duas algas encontradas na Baía de Todos os Santos é tóxica e, portanto, não há perigo para a vida das pessoas. A primeira delas, a gymnodinium sanguineum, foi responsável pela primeira onda de maré vermelha, ocorrida no início de março e causa da mortandade de 50 toneladas de pescado. Já a segunda alga, de espécie gyrodinium empudicom, foi causadora da segunda maré vermelha, que apareceu em meados de abril.

O fenômeno da maré vermelha é um fenômeno natural que se caracteriza pela floração excessiva de certos tipos de algas. O professor Oberdan Caldas, pesquisador do Insituto de Biologia e um dos responsáveis pelo laudo do CRA, aponta como causa do problema o enriquecimento nutricional da Baía de Todos os Santos, que estimula a proliferação das algas. Segundo ele, “esse enriquecimento nutricional ocorre de maneira natural proveniente por exemplo dos manguezais que rodeiam a Baía de Todos os Santos, assim como é resultado de ação antrópica, isto é, esgotos tratados, não tratados além de despejos industriais e da descarga de fertilizantes aplicados na agricultura”. Para o professor Eduardo Mendes da Silva, também biólogo e responsável pelo laudo do CRA, o que determinou o acontecimento do fenômeno neste momento específico foi a estabilidade climática vivida no final de fevereiro e início de março.

Beth Wagner afirma ainda que o laudo do CRA é definitivo e que as críticas feitas a ele não vieram de especialistas na área, mas de “segmentos de parte da mídia”. Quando perguntada pelo motivo da manutenção da instrução normativa do Ibama, mesmo constando no laudo a não toxidade das algas, ela respondeu: “Nós ainda estamos em condições instáveis na Baía de Todos os Santos. Esse aparecimento dessa nova mancha, por exemplo, mostra que existe um ambiente favorável à proliferação dessas microalgas”.

Apesar de CRA considerar o laudo definitivo, maré vermelha não parece ser uma explicação convincente para a população afetada. “Tá mais do que comprovado que isso não tem nada a ver com a maré. A maré é inocente”, afirmou Israel Barbosa, pescador há 30 anos. O consenso entre os pescadores é de que tenha havido vazamento em um dos dutos da Petrobras que passam pelo litoral de Saubara.

“Pra mim, depois que botou esse tubo aí, pegou uma bomba e escapou alguma coisa, mas eu não tenho como provar”, opina Antônio Raimundo dos Santos. A hipótese de vazamento nos dutos da Petrobras é totalmente descartada pelo CRA e por cientistas que estudaram o desastre. Ronan Brito, da fundação Onda Azul, concorda com os autores do laudo oficial e afirma que “não há nenhum indício para que isto tenha acontecido, as conseqüências teriam sido muito mais graves do que as que foram observadas”.

Laudo aprovado

O coordenador de gestão ambiental da Superintendência de Recursos Hídricos (SRH), Eduardo Topázio, disse que, apesar de não concordar com os modelos utilizados pelos pesquisadores responsáveis pelo laudo, não se opõe ao resultado final da investigação. Rosemberg Pinto, gerente regional de comunicação institucional da Petrobras no nordeste, afirma que a Petrobras comprovou que não houve nenhum incidente nos dutos da empresa por meio de relatórios enviados aos órgãos competentes. Além disso, afirma que “ao ser verificada a mortandade de peixes, a Petrobras disponibilizou prontamente ao CRA toda a infra-estrutura necessária para ajudar a identificar as causas, como helicópteros, embarcações e o laboratório de análises da empresa”. Rosemberg considera que as acusações feitas à Petrobras são fruto de “notícias levianas e irresponsáveis” e diz que “a Petrobras já acionou o seu setor jurídico para exigir que sejam feitas reparações imediatas, com mesma ênfase e destaque”.

O desastre ecológico deixou clara a vulnerabilidade econômica da região, formada por dezenas de municípios e localidades dependentes do mar. No município de Saubara, por exemplo, 60 a 70% da população é de pescadores ou marisqueiras. O secretário de pesca municipal afirma que “a partir de agora” vai ser diferente. “Vamos sair, procurar empresas que mostrem alternativas na área da pesca, pesca em cativeiro, ostricultura, que também fazem parte da nossa cultura”.

Demetrio Nery, pescador e patriarca de uma casa onde vivem 18 pessoas, está desesperado com a situação. Todos os adultos da casa dependem do mar. Em abril estavam vivendo do restante das cestas básicas. “Nunca vimos algo assim. Dá até para chorar com um negócio desse. Os meninos ficaram todos de barriga vazia. Eu não quero que meus netos sejam pescadores. Eu mesmo, eu vou morrer aqui, me enterrar aqui, eu não tenho nada”, desabafou.

   
   
   
 
   
 
 
   
   
 
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Universidade Federal da Bahia. Jornal da Facom. 2007.