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Memória negligenciada

 

Agonia dos ex-cinemas Jandaia e Pax apontam pouco caso para a preservação de espaços históricos

   
 

Lívia Nery
Da equipe de reportagem

 
 
Lívia Nery
Agonia dos ex-cinemas Jandaia e Pax apontam pouco caso para preservação de espaços históricos.
   
   
 

“Ele é tão alto... De cima dele dá pra chegar no céu!”, comentou Douglas Silva, de seis anos. Enquanto falava, ele apontava para o cine-teatro Jandaia, que fica em frente à janela de sua casa, na Baixa dos Sapateiros. Apesar de saber que ali funcionou um cinema, Douglas não faz idéia de que aquele lugar, décadas atrás, já foi chamado de “Palácio das Maravilhas”, tamanha sua grandiosidade e imponência. Hoje, motoristas e pedestres passam sem notar o velho Jandaia, que está fechado há uma década e com suas instalações completamente deterioradas.

Na última vistoria feita no prédio pela Coordenadoria Especial de Defesa Civil da Prefeitura de Salvador (Codesal), em 2003, o engenheiro Roberto Casqueiro identificou que o telhado estava danificado, as paredes úmidas e com infiltrações e as tubulações enferrujadas. “Na época não eliminamos o risco de desabamento”, ressaltou, embora a estrutura do prédio seja toda de concreto. Ele afirma que enviou o relatório à Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo (Sucom), que interditou o imóvel e notificou os donos, sem que até agora eles tenham “tomado providências”. Casqueiro acrescenta: daquele ano para cá, as condições do antigo cinema devem ter sido agravadas.

O engenheiro levantou a hipótese de o prédio ser desapropriado pelo governo para o projeto de restauração e revitalização da Baixa dos Sapateiros. Segundo ele, a velha casa de espetáculos “está numa área de preservação rigorosa”. A rigorosidade a qual se refere, no entanto, não é tão evidente assim. A região está abandonada pelo poder público e o projeto de revitalização e restauração não chegou a ser concretizado em nenhum dos seus prédios da área.

Cláudio Valansi, sócio comercial da empresa Savinal S/A, atual proprietária do Jandaia, afirma que nunca recebeu nenhuma notificação da Sucom sobre a interdição do prédio. Declarou à reportagem que sua empresa tem participado das discussões com o governo estadual em torno da revitalização. O prédio, segundo ele, faria parte da reforma do Centro Histórico, que incluiria toda a Baixa dos Sapateiros. “Ficaram de fazer um estudo e me falar, para fazer uma parceria para um centro cultural no lugar, mas até hoje estou aguardando”, disse. Valansi também é dono do prédio do antigo cine Tupi e diz possuir outros cinemas antigos espalhados pelo país.
“A gente não esqueceu do caso da Bahia, mas precisamos ter uma ajuda do governo”, disse ele, anunciando que agora, com a mudança governamental, pretende retomar os contatos. Questionado sobre o motivo de não ter dado atenção e manutenção ao imóvel do Jandaia, afirmou que já estava contatando uma empresa para fazer os reparos do imóvel. Garante que agora, a partir de maio, vai dispensar mais atenção ao Jandaia e a outros cinemas da região Nordeste dos quais é dono.

Decadência da Baixa dos Sapateiros foi crucial

Quem passa pelo prédio do ex-cine Jandaia e se aventura a entrar pelas aberturas existentes, fica surpreso com o mau estado de conservação do antigo cinema. Quando chove, a água entra pelas brechas do telhado que desabou, e que a cada dia ameaça ceder mais um pouco. Os balcões, que outrora serviam de camarote aos espectadores da alta sociedade baiana, hoje estão cobertos de lodo e escoram partes do teto.

Como as portas eram facilmente arrombáveis, pessoas entraram no lugar e roubaram tudo o que havia de valor, como os corrimões e esculturas de latão italiano, os móveis dos camarins, o granito das escadarias e todo o maquinário abandonado no cinema. O lugar até pouco tempo servia de abrigo para moradores de rua e traficantes, conforme alegam comerciantes da região. “A malandragem entrava e está tudo destruído, roubaram tudo aí dentro. Precisou a gente e as outras lojas ao lado cimentar a porta para evitar que as pessoas entrassem”, afirmou Severino Cortizo, cuja família é proprietária há quase 80 anos de uma loja de ferragens na parte térrea do prédio onde estava o cinema.

Cortizo lamenta a decadência que afetou o Jandaia e, na sua opinião, toda a Baixa dos Sapateiros. Sua irmã, que trabalha na loja e viveu o tempo áureo dos cinemas da região, recorda-se com saudades de quando o lugar era o centro econômico e cultural da cidade. “Isso aqui era uma riqueza. Aqui só entrava a alta sociedade. Eu assisti muitas matinês no cine Jandaia, e minha mãe, na época, vinha de chapéu e de luvas pra cá”, relembra.

Fundado em 1910 pelo comerciante sergipano João Oliveira, um apaixonado por cinema, o cine-teatro Jandaia até os anos 70 funcionou em plena atividade. Naquela época, os cinemas espalhados pelos bairros eram uma procurada opção de lazer para os baianos. A Baixa dos Sapateiros, movimentado centro comercial no período, abrigava as salas mais importantes, como o cine Pax, o Aliança e o Jandaia, que dispunha de 2.200 lugares. Como teatro, o Jandaia recebeu artistas ilustres: Carmem Miranda, Elis Regina, Riachão, entre outros.

Na década de 70, com o deslocamento do centro comercial de Salvador para outras regiões, a família encontrou dificuldades em manter o cinema e vendeu o prédio para a Savinal S/A, atual proprietária, que o arrendou, já nos anos 80, para a Orient Filmes. Depois de um período exibindo filmes de pornografia e artes marciais, a empresa de exibição desistiu do Jandaia, com o crescente aparecimento dos cinemas nos shopping-centers. Desde 1998 está abandonado.

Cine Tupy está em litígio

Outros dois cinemas da Baixa dos Sapateiros, o Cine Pax e o Cine Tupy, que também sofreram com a decadência da Baixa dos Sapateiros, podem ser alvo de mudanças em breve. O arrendamento do Cine Pax, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, está sendo negociado com uma empresa que quer transformá-lo em espaço de eventos, enquanto a Savinal S/A, proprietária do Cine Tupy, afirmou estar com um processo contra a Orient Filmes, atual locatária, alegando falta de pagamento.

Segundo Roseneide Cerqueira, funcionária da comunidade Franciscana, “a reestruturação do Cine Pax não é fácil, por demandar muito dinheiro com reformas”. Mas ela garantiu estar negociando com uma empresa interessada em fazer dele um lugar de eventos. “O nome eu não posso revelar, porque ainda não fechamos o contrato”, completou. Esta não foi a primeira proposta de revitalizar o lugar. Em 2003, Daniela Mercury anunciou que iria arrendar o espaço e transformá-lo em casa de show. Não deu certo.

No processo de decadência, na década de 80, o cine Pax passou também a exibir filmes pornôs, quando foi interditado pela Sucom por apresentar problemas nas instalações elétricas. Em 2005, foi invadido por integrantes do Movimento dos Sem-teto. Apesar da interdição, o espaço não está com sua estrutura comprometida.

Para o Tupy não foi anunciada nenhuma proposta de revitalização. Os atuais donos declararam estar com uma ação na justiça para rescindir o contrato e despejar a Orient Filmes, que estaria há cinco anos sem pagar o aluguel pela exploração do prédio. Cláudio Valansi, um dos donos da Savinal, declarou não ter mais interesse em abrigar um cinema pornô no lugar, mas não deixou claro o que pretende promover.

Procurada pela reportagem, a Orient Filmes não quis se pronunciar sobre a ação. O diretor de marketing, Franklin Mônaco, respondeu ao telefonema dizendo que este assunto seria “sigiloso”, e que a vida jurídica da empresa “não é assunto para a imprensa”. Ele chegou a ameaçar abrir um processo contra o jornal caso este tema fosse abordado na reportagem.

   
   
   
 
   
 
 
   
   
 
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Universidade Federal da Bahia. Jornal da Facom. 2007.