Inicial | Índice | Editorial | Edições Anteriores
Validade desta edição: até 15 de Junho de 2007
| Fale Conosco | Expediente
   
 
   
 

Da arte de se falar besteira

 

 

   
 

André Setaro

   
   
   
 

A maior parte da conversação humana é pontuada pela mediocridade. Mas, por outro lado, quem se dispõe a ser sério corre o risco de se tornar, como diz a língua espanhola, uma pessoa ‘tonta e grave’, o que é extremamente desagradável. A solução se encontra na arte de falar ‘besteira’, mas com ironia, engenho e arte. Geralmente, a média das pessoas, por medíocres, somente fala besteira, mas considera esta quando não se inscreve a conversação nos seus moldes tradicionais. O indivíduo que fala galhofas tende a ser considerado uma pessoa que fala besteira. É de se ver então que Machado de Assis tinha razão quando diz, em ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, que escreve com ‘a pena da galhofa e a tinta da melancolia’. Para o medíocre, Machado fala besteira, como já se ouviu dizer deste gênio por pessoas consideradas cultas pela sociedade – e doutorandas, diga-se de passagem.

Há algo mais revoltante do que ver e ouvir pessoas trocando ‘abobrinhas’ pelo celular? Em certas ocasiões, em resposta ao interlocutor imbecil, a resposta deveria ser ‘latida’: au, au, au, au. O inesquecível Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), que a nova geração não deve sequer ter ouvido falar tão preocupada que está com os ‘aditivos’ audiovisuais, queria criar o Ministério das Perguntas Cretinas. Mas, acrescentaria, não são somente perguntas, senão toda a conversação é que se caracteriza pela cretinice. A conversação que se observa entre as pessoas no shopping, na padaria, nas faculdades, etc, é toda ela pontuada pela mediocridade. A classe média, por exemplo, fala mais besteira do que a classe menos aquinhoada pela sorte. Particularmente, creio que falar ‘besteira’ (com as aspas) é uma arte e um recurso necessário para se suportar a mediocridade ululante.

O telefone celular, tão necessário e tão útil para certas necessidades, é um elemento deflagrador, porém, para o estabelecimento da asnarice. Não se agüenta mais quando, numa fila de banco (e do Bradesco que é coisa para derrubar qualquer um de apoplexia generalizada), a pessoa que se encontra na sua frente e atrás está conversando besteira, se mulher, falando, por exemplo, para quem está do outro lado, que encontrou, enfim, uma fitinha que vai ficar muito bonitinha na blusa que comprou no Iguatemi.

Em ‘Persona’ (1966), que tem o título em português completamente ‘besta’ e idiota, ‘Quando duas mulheres pecam’, uma atriz de teatro (Liv Ullmann), de repente, decide não mais falar porque nada mais tem a dizer ao mundo. Antípoda, portanto, dos porta-vozes da parvoíce que se espalha por toda parte. Já Pedro Almodóvar, notável realizador espanhol, crítico e grande observador do ‘matriarcado madrileño’, gosta de pagar às mulheres para que estas conversem à vontade a fim de que ele possa escutá-las.

O fato é que há de se distinguir besteira com aspas de besteira sem aspas. Cultivo com muito prazer a ‘besteira’, que a uso no cotidiano. Segundo Aurélio, ‘o pai dos burros’, besteira é uma ação tola, geralmente impensada; babaquice, bobagem, bobeira, besteira, bestice, bestidade, bobice, tolice, dislate, disparate, parvoíce, estupidez, burrice, burrada, burragem, burricada, burriquice, jericada, asnada, asnaria, asneirada, asnice, asnidade. Um dislate que precisa, como um petardo, ser disparado quando a estupidez assoma na conversação.
Conclui-se este com Hobbes: “Put thousands together less bad, but the cage less gay’ (“Ponham-se milhares juntos, menos mal. Mas a jaula estará menos alegre”).

André Setaro, professor da Facom/UFBA, é crítico de cinema e colunista deste jornal. E-mail: setaro@ufba.br

   
   
   
 
   
 
 
   
   
 
Leia também
   
 
O lixo de cada dia.

Em Salvador, sistema de coleta seletiva deixa a desejar; cooperativas enfrentam concorrência.

 
Cura pela caneta
 

Gol de mendicância

Maior estádio de futebol, a Fonte Nova é habitat de sem-teto considerados "perigosos" por autoridades.

 

Clubes fechados e falidos

Agonia dos “espaços exclusivos” de lazer de classe média prossegue, com dívidas e abandono

 
Ser igual é legal

Adoção de crianças por homossexuais é festejada por juiz de menores; padre Sadoc faz restrições

 

Elas são do balanço

Cada vez mais garotas ocupam espaço de discotecagem antes reservado apenas aos machos

 

Do nada a lugar nenhum

Projeto do sistema de trem metropolitano (metrô) na 3ª maior capital do país é um buraco sem fundo

 
Ler, mas como?

Projeto de vereadora, que estimula leitura em Salvador, se esbarra na falta de estrutura governamental

 
Qual história da África?

Aplicação de lei que obriga o ensino sobre a contribuição africana ao Brasil enfrenta entraves

 
Universidade sem teto

Ninguém em Cachoeira sabe onde o governo Lula quer abrigar o campus “inaugurado” na campanha eleitoral

 
Procurando sarna pra Naomar

Avança o debate sobre a “Universidade Nova”, proposta do reitor da UFBA criticada por seus adversários

 
A natureza não fala

Pior desastre ecológico na Baía de Todos os Santos seria “culpa” de fenômeno da própria maré

 
Loucos são os outros

Manicômios, sanatórios e parentes de pessoas com distúrbios mentais tentam se adaptar a novo modelo

 
A gente não quer só comida

Prossegue briga entre o Clube Bahiano de Tênis, Perini e Grupo Sala de Arte

 

Memória negligenciada

Agonia dos ex-cinemas Jandaia e Pax apontam pouco caso para a preservação de espaços históricos

 
 
 
 
Universidade Federal da Bahia. Jornal da Facom. 2007.