ECONOMIA
Mínimo: dá pra (sobre)viver?
Reajuste do salário mínimo não atende às expectativas da população
Filipe Costa
Milena Carvalho
O texto da Constituição brasileira é claro: o salário mínimo dever atender às necessidades vitais básicas dos cidadãos, tais como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. No entanto, a realidade brasileira é completamente oposta ao que está previsto na Lei máxima que rege o País. No mês de março, o valor do salário mínimo foi reajustado em 9,21%, passando de R$ 380 para R$ 415. Foram levados em conta a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) em 2007 e o crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) de 2006. O valor, segundo estudos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), está muito abaixo do ideal. Mensalmente, o órgão divulga o que seria o mínimo adequado para uma família composta por dois adultos e duas crianças. Em fevereiro, quando o valor ainda era de R$ 380, o DIEESE sugeria uma quantia cinco vezes maior: R$ 1900, 31. Diante desta distorção, vale a pergunta: Dá pra (sobre)viver com o salário mínimo? A resposta está com os brasileiros, como a auxiliar de serviços gerais, Nanci Ferreira, obrigada a colocar em prática verdadeiras noções de economia para driblar as muitas dificuldades. Os R$ 35 a mais no orçamento pareceram, a princípio, até muito para quem lida com tão pouco. No entanto, na hora de colocar as despesas na ponta do lápis, Nanci percebeu que o dinheiro extra não é lá grande coisa e fazê-lo render até o final do mês é, ao mesmo tempo, complicado e fundamental. Somente a alimentação e a moradia consomem quase toda sua renda. O supermercado é um dos lugares onde boa parte do salário é deixada, sobretudo diante das recentes e expressivas altas nos preços dos derivados do trigo, como o pão, e do feijão, produtos imprescindíveis na mesa das famílias mais humildes. Em fevereiro, a inflação registrada em Salvador foi de 0,47%, uma taxa considerável, que provoca grande impacto nas despesas. Assim como na maioria dos lares de Salvador, onde as mulheres chefiam as famílias, Nanci Ferreira é a responsável, com apenas um salário mínimo, pelo sustento do filho adolescente e da mãe idosa. “Nem isso era, com todos os descontos que eles fazem, acabava recebendo trezentos e nove”, diz ela, que nunca ganhou uma remuneração superior àquela estipulada como mínima pelo governo. Nanci integra a lista dos 547 mil moradores da Região Metropolitana de Salvador (RMS) cuja renda oscila entre meio e um salário mínimo, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2006.
“Pobre é ousado”
A mulher de 34 anos trabalha no setor de limpeza da Biblioteca Central da UFBA. É moradora do bairro de Montserrat, na Cidade Baixa, onde sempre viveu ao lado de sua mãe, Maria da Conceição Ferreira, 57, que também nunca recebeu remunerações além do mínimo. Maria trabalha como diarista, fazendo faxinas e lavando roupas. O bom estado de saúde da mãe é comemorado pela filha, que não teria condições de arcar com gastos comuns em medicamentos e plano de saúde. Diferentemente do que diz a lei, os custos com saúde e educação não são cobertos pelo salário mínimo. Nanci conta que gostaria de ser auxiliar de enfermagem, profissão que, para ela, ofereceria melhores condições de vida, mas no seu limitado orçamento doméstico não sobra lugar para cursos que a capacitariam para exercer novas e melhores funções. Aprisionada em um ciclo vicioso, não vê alternativas a não ser incentivar o filho, Natan Ferreira, 15, a trilhar um caminho distinto do seu, o que também se torna difícil diante da falta de dinheiro. Em 2006, Natan foi escolhido um dos melhores alunos do Colégio Estadual Luis Tarquínio, e, por isso, conseguiu uma vaga no concorrido Colégio da Polícia Militar (CPM). O ensino de melhor qualidade oferece ao garoto maiores oportunidades para concretizar o maior sonho da mãe: vê-lo ingressar no ensino superior ou seguir carreira na Polícia Militar. Nanci não mede esforços para investir na educação do filho e sempre procura uma brecha no orçamento apertado. Como fica boa parte do tempo fora de casa e, portanto, não pode estar ao lado do garoto em tempo integral, ela o matriculou em um curso de informática e em uma banca de reforço escolar, onde passa toda a tarde. São R$ 50 que fazem falta, mas que são gastos sem arrependimentos, garante. Isso não seria possível, não fosse a pensão de R$ 120, dada pelo pai de Natan. “O preço é alto, mas vale para não deixar meu filho na rua, sem ocupação”, diz. Nestes últimos meses, Nanci vem se organizando financeiramente para comprar o módulo didático exigido pelo CPM, cujo preço é de R$ 300, quase 75% do novo valor do salário mínimo. “O colégio é público, mas o fardamento, que eu comprei há dois anos, é caríssimo. Os livros, que antes eram dados, desde 2007, eles cobram. Ano passado foram mais de trezentos reais com livros, não comprei todos, e esse ano eles inventaram o módulo. Já era para eu ter comprado. Os professores estão cobrando e eu vou ter que passar no cartão, dividir em umas quatro vezes, porque é praticamente meu salário”, lamenta a mãe. Considerada vital pela Constituição, a alimentação da família, apesar de nunca faltar, é regrada. Presentes caros, viagens, saídas constantes com os amigos também estão fora de cogitação. Na vida com um salário mínimo não há espaço para coisas que, apesar de comuns para a classe média, são tidas como itens de luxo para quem já se acostumou a sobreviver com restrições. Lazer é palavra rara no vocabulário daqueles que recebem o mínimo. “A gente não pode comprar coisas supérfluas, não pode sair com freqüência, porque aí fica difícil. Tem coisas que meu filho quer a mais, coisas que ele me pede pra comprar e eu não posso. Ele quer um celular e eu não posso comprar, quer um MP4... Com este salário não tem como comprar”. Para economizar, algumas “táticas” têm de ser desenvolvidas. Uma delas é substituir dois dos quatro ônibus, que deveria tomar para ir ao trabalho e voltar, por longas caminhadas. “Saio cinco e meia da manhã, vou até Caminho de Areia para pegar um ônibus só e aí tenho que saltar em um ponto que também é longe do meu trabalho e andar mais. Na volta é a mesma coisa”, explica. A outra é utilizar os ticket’s refeição, que deveriam ser gastos diariamente no seu almoço, nas compras do mês da família.“Trago a marmita pronta de casa. Sai mais em conta eu fazer a comida do que gastar o ticket de cinco reais aqui, só comigo”. O dinheiro economizado vai, prioritariamente, para os gastos essenciais e, quando sobra, para algumas farras, pequenas e esporádicas, tidas como horas de “lazer” para Nanci. Em algumas sextas-feiras ela e seus colegas de serviço, saem para comemorar o início do final de semana em um bar. Quando sai o salário, a rodada de cerveja é dobrada, desde que haja desconto. Ao menos nesse dia, as lamentações são deixadas de lado. Entre uma cerveja e outra, compartilham algumas insatisfações, outras tantas alegrias, muitos planos, raras realizações, que, para eles, não precisam ser extravagantes. A própria Nanci, ainda comemora a compra de um televisor de 21 polegadas, um desejo antigo. “Às vezes, com o salário mínimo, dá até pra fazer uns exageros. Dá porque pobre é ousado”, fala, aos risos.
Se Liga Bocão, lixo e derivados
Há ainda quem consiga sobreviver com menos de um salário mínimo. Na RMS, segundo o Censo Demográfico realizado pelo IBGE, em 2000, 44% das pessoas viviam sem rendimento. Dentre elas, estava Iêda de Jesus. Hoje, aos 29 anos, Ieda cata lixo e sustenta sua família com o que tira dele. O orçamento aumentou um pouco desde que passou a receber o Bolsa Família e um salário de R$ 350, por invalidez – ela foi considerada inapta para o trabalho por sofrer com crises constantes de epilepsia. As dificuldades, desde então, diminuíram, mas não deixaram de xistir. Com o que recebe, paga as contas de luz e água, compra o gás e uma cesta básica que não dura até o fim do mês. De acordo com o DIEESE, o custo mínimo da alimentação para uma família de quatro pessoas, dois adultos e duas crianças, no mês de fevereiro, em Salvador, era de R$167,77. “É pegando o dinheiro e pagando conta no banco. O telefone cortou porque não pude pagar”, conta Iêda. Sempre resignada, modera o tom de voz, fala pausadamente, buscando pronunciar as palavras do modo como gostaria e que considera certo, com olhar perdido e postura cabisbaixa, aparenta ter vergonha de ser um retrato tão fiel da miséria e do abandono. Ela conta, com certa reticência, sua rotina difícil ao lado de suas três filhas e de seu marido. A família, que dorme amontoada em um minúsculo cômodo, acorda junta, às 6h da manhã. Comem o que tiver, se arrumam e saem caminhando com um desengonçado carro de mão, em direção ao Recanto das Ilhas, condomínio situado no Bairro de Pau da Lima, próximo ao local onde residem, para revirar o lixo em busca da sobrevivência. Enquanto as meninas, Rosângela, Renata e Raiane de 14, 10 e 9 anos, respectivamente, saem pedindo ajuda em alguns prédios, Iêda e seu marido, Raimundo dos Santos, 44, saem à procura de lixeiras. Vidro, plástico, papelão, alumínio, o que para alguns é lixo, ganha utilidade e se transforma em renda. Consigo dois, quatro reais por dia”, diz Iêda. Vez ou outra, o marido consegue um serviço extra no condomínio, o que lhe rende não mais do que dez reais. Santos já chegou a trabalhar em uma grande distribuidora de botijões de gás. Entretanto, conta que não teve a carteira de trabalho assinada – documento que, por sinal, nem ele nem a esposa possuem – e não recebeu o salário mínimo, exigência da lei, ignorada por inúmeras empresas, que contam com o medo daqueles que preferem calar-se diante da iminente possibilidade do desemprego. Pela tarde, as filhas vão para a escola, pré-requisito para o recebimento do Bolsa Família, enquanto Iêda e Santos continuam recolhendo lixo. Só mais tarde, depois de tudo separado, vendem o que conseguiram após um extenuante dia de trabalho e voltam para casa. À noite, na construção de apenas três cômodos - uma sala, um quarto e um banheiro, o único lazer da família é assistir à TV, que, segundo a própria Iêda, está para ir embora de tão velha. As novelas, eficazes instrumentos de fuga da realidade, e o programa popular “Se Liga Bocão” são unanimidades na casa. Ver TV também é a programação de lazer da família para os domingos, único dia no qual não catam lixo. “A gente não sai, só fica em casa. Queria dar um passeio, mas não tem como ir”, conta.
O livro do faz de conta
Esta não é a única reclamação da família. As meninas pedem, além de lazer, outras coisas que os pais não podem dar. Rosângela quer um celular, Renata uma boneca, Raiane, mais tímida, prefere o silêncio. Sem ter como atender aos pedidos, Iêda, aconselha somente que elas estudem, e, assim, possam trabalhar e ter condição de conseguir o que desejam. Afinal, não custa acreditar que os esforços, um dia, serão devidamente recompensados no Brasil. Incentivadas pela mãe, as meninas ainda conseguem sonhar: Rosângela quer ser professora, Renata vai um pouco além: “Quero aprender a ler e ser diretora”, comenta, com um sorriso amarelo que denuncia um compreensível descrédito no que acabara de dizer. Para concluir esta matéria, é válido relembrar um outro trecho da Constituição, o Artigo 1º, que garante: a República Federativa do Brasil tem como fundamentos a soberania, a cidadania e a dignidade humana.
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