CIDADE
Em todo canto há uma escolinha
Escolas particulares de bairros pobres apresentam tantos problemas quanto os colégios públicosLuciana Alves
Rodrigo Aguiar
Baixos salários, falta de material didático, salas com alunos de séries diferentes, professores lecionando em áreas nas quais não tem formação e situação ilegal de algumas instituições são alguns dos problemas encontrados com freqüência em escolas particulares de bairros populares. “O ensino no colégio público, pra mim, não presta”. Essa é a opinião de Rosângela Santos, servente da Biblioteca Central da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Este ano, ela matriculou a filha Ana Carla dos Santos, 15 anos, no Colégio da Liberdade, escola particular situada no bairro da Liberdade, após a adolescente ter perdido o ano letivo na escola do bloco Ilê Ayê, uma instituição pública. As principais queixas de Rosângela em relação aos colégios públicos são as greves e as faltas dos professores. “De uma hora pra outra, voltam (as aulas), as pessoas têm de fazer tudo de vez e aí não dá tempo de aprender”, afirma. Para ela, os R$ 120 pagos mensalmente na educação de Ana Carla são um bom investimento. “Estou satisfeita. Apesar de ter pouco tempo de aula, os professores me parecem ter uma boa competência”, diz Rosângela. Assim como Rosângela, outros pais matriculam seus filhos em escolas particulares de bairros carentes. Essa é a alternativa encontrada por quem não tem dinheiro para pagar a mensalidade de um colégio de grande porte e não quer colocar os filhos em um estabelecimento da rede pública. No entanto, muitas vezes, estudar em uma instituição particular pode não ser uma experiência muito mais vantajosa.
Dom Pedro I
Localizada no bairro do Nordeste de Amaralina, a Escola Dom Pedro I é um exemplo de estabelecimento de ensino onde há um forte caráter familiar (seis filhas da dona trabalham na instituição). Marinalva Souza, 56 anos, proprietária e diretora do colégio, fundou-o há 40 anos, no quintal de sua casa e, atualmente, a instituição atende crianças e adolescentes do maternal à 8ª série do ensino fundamental. A mensalidade cobrada é de R$ 80 (da 1ª à 4ª série) e de R$ 130 (da 5ª à 8ª série). No mesmo local, funciona também a Creche Aprendendo Com Jesus. A estimativa é de que aproximadamente 800 crianças e adolescentes, entre creche e escola, estejam matriculados. “Por sala, nós temos de 20 a 25 alunos. Mas agora vamos dividir a 5ª série, porque está com 48 alunos e a sala está muito cheia, apesar de ser grande”, explica a diretora. Questionada sobre se ocorre, em sua escola, a prática de um professor licenciado em determinada área lecionar em outra, a diretora respondeu que não, pois “o professor não iria render dando aula de algo que não conhecesse”. No entanto, este fato foi desmentido quando sua filha, Carla Souza, 27 anos, licenciada em Ciências Biológicas pela Ucsal (Universidade Católica de Salvador), afirmou também dar aulas de Química e de Inglês no colégio. Depois, a própria diretora, que é professora de História da escola, voltou atrás e afirmou dar aulas também de Geografia. Siméia Simões, 34 anos, graduada em Geografia pela Ucsal, ex-professora da Escola Dom Pedro I, revela: “Quando eu cheguei lá (Dom Pedro I), pra minha surpresa, ela (a diretora) me deu a matéria Língua Portuguesa, porque eles estavam na dúvida se a professora de Português ia ou não retornar pra escola”. Mesmo não sendo essa a sua disciplina de formação, ela, por precisar do emprego, aceitou a oferta. Entretanto, no seu primeiro dia de aula como professora de Português, Siméia foi surpreendida com o retorno da colega e passou então a dar aulas de Geografia.
Baixos salários e falta de material
Segundo o Sinpro-Ba (Sindicato dos Professores da Bahia), o piso salarial estabelecido pela categoria por hora-aula é de R$ 3,50 (50 minutos) e R$ 4,20 (60 minutos). Apesar de respeitar os valores determinados pelo sindicato, o salário não é suficiente para atender às necessidades dos profissionais. “Isso é uma queixa minha e de muitos colegas meus. O salário é muito baixo e não há um respeito com o professor”, diz Siméia. Ela reclama que, durante as primeiras semanas de trabalho na Escola Dom Pedro I, não sabia qual seria o valor pago por aula. Mais tarde, completado um mês de serviço, Siméia recebeu R$ 3,50. “Como eu posso me especializar, comprar livros, preparar boas aulas e ainda sustentar uma família com esse salário?”, questiona Siméia. Ex-professora de Educação Física e de Inglês da mesma instituição, Jucir da Guia, 26 anos, acredita que o colégio poderia pagar melhor aos professores por possuir uma quantidade significativa de alunos e receber doações esporádicas de empresas, como a Petrobrás. Entre os objetos doados, estão computadores e máquinas para a montagem de uma padaria. Além disso, a creche Aprendendo Com Jesus é uma das instituições cadastradas no projeto Prato Amigo, da Prefeitura de Salvador. Através deste projeto, empresas privadas que dispõem de alimentos excedentes, não comercializáveis e ainda em condições de serem aproveitados, os doam para instituições que desenvolvam algum tipo de trabalho social. Outra queixa apresentada por Siméia é a falta de material disponível. “Professor de Geografia não pode dar aula sem mapas, certo? Os mapas da escola estavam como se nunca tivessem sido tocados. Quem começou a usar os mapas fui eu”, declara. Jucir também reclama da ausência de material: “eu acho que o Dom Pedro é um colégio bem estruturado, tem até uma área mais ampla pra Educação Física, mas não tem material. Licenciada em Educação Física, mas também contratada para ensinar Inglês, já que fez um curso do idioma, o que é suficiente para lecioná-lo no ensino fundamental, Jucir considera o nível dos ex-alunos fraco. “A escola no ano passado, segundo os estudantes, teve seis professores de Inglês. Um entrava, depois saía, vinha outro. Então, nem perguntas básicas eles sabiam”, afirma.
Experiências passadas
Maria Silva*, 20 anos, estudante da UFBA, é ex-aluna do Centro Escolar Ana Amélia, situado na Fazenda Grande do Retiro, e tem muitas queixas da instituição. Ela ingressou na escola na 2ª série do ensino fundamental e freqüentou-a até a 8ª série. “Eu achava o ensino muito fraco e não prestava atenção nas aulas, porque não via nenhum atrativo”. A estudante lembra-se de casos como do genro da dona do colégio que dava aulas de Educação Física, mesmo sem formação na área. Apesar de tido vontade de sair do Centro Escolar Ana Amélia enquanto aluna, Maria diz só ter percebido o quão deficiente foi a sua educação mais tarde. A estudante conta também ter se sentido prejudicada no vestibular da UFBA com relação às cotas, já que, para ter direito a concorrer entre os cotistas, a pessoa precisa ter estudado, além do ensino médio, pelo menos uma série do ensino fundamental em um estabelecimento da rede pública. Para ela, o “Estado não vê as particularidades, e sim a totalidade”. O raciocínio funciona da seguinte maneira: escola particular é boa e escola pública, não. Dessa forma, pessoas que tenham estudado em colégios particulares de bairros populares podem ser duplamente prejudicadas: pela baixa qualidade do ensino e por não terem direito às cotas. Ela ainda salienta que o seu processo de construção de conhecimento foi muito pessoal e afirma observar a situação de precariedade no ensino da antiga escola se repetir com o seu sobrinho, atualmente aluno da instituição. Maria diz que, das pessoas oriundas da sua turma, apenas duas cursam faculdades públicas: ela própria e uma estudante de Pedagogia da Uneb (Universidade do Estado da Bahia). Um dos aspectos destacados pela estudante são as relações familiares. “As filhas da dona e de algumas professoras antigas ensinam muitas vezes por comodidade. Por exemplo, às vezes a pessoa desiste de fazer um curso que queria simplesmente porque é mais cômodo ensinar na escola, onde o emprego já é certo”, afirma. Com experiência em escolas particulares de bairros pobres, Jutilane da Guia, 28 anos, licenciada em Geografia pela Ucsal, trabalha com educação infantil e fundamental. Segundo ela, um dos aspectos mais comuns entre esses colégios são as salas mistas. “Como a maioria das escolas não tem alunos suficientes, eles não vão contratar um professor pra dar aula pra quatro alunos. Se em quatro alunos de 1ª série e dois de 2ª, jogam todo mundo numa sala só”, explica. Problemas para receber salário devido ao grande nível de inadimplência e a questão da ilegalidade das escolas também são apontados como existentes em grande parte dessas instituições. Referindo-se a empregos anteriores, Jutilane lembra que “os próprios pais viam as coisas e agiam como se nada estivesse acontecendo, por ignorância ou comodidade”. Ela ainda reforça a idéia de que os pais preferem pagar “cinco reais” a uma escola particular a colocar os filhos em um colégio público. Apesar das inúmeras reclamações das escolas nas quais ensinou, Jutilane afirma que está satisfeita com as condições de trabalho dos colégios nos quais está empregada atualmente.
Questão legal e ausência de fiscalização
Segundo a Resolução 037/01 do Conselho Estadual de Educação, os estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio do Sistema Estadual e Ensino só podem funcionar após a publicação de um dos seguintes atos: autorização, renovação de autorização e credenciamento. A autorização é concedida após o pedido inicial da instituição para funcionamento e tem prazo de até 4 anos. A renovação prorroga a autorização concedida anteriormente e tem prazo de até 2 anos. O credenciamento é concedido às instituições de ensino que mantêm pelo menos um curso autorizado há 4 anos e que atendam a uma série de exigências especificadas na Resolução. Esse credenciamento tem prazo de vigência permanente. São permitidas apenas duas renovações de autorização de curso. Cabe ao Conselho Estadual de Educação e à Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC-Ba) a concessão de autorização, renovação e credenciamento às instituições de ensino. Sônia Freitas, 52 anos, coordenadora da Coordenação de Legalização e Orientação das Unidades Escolares (CLO) da SEC-Ba, reconhece não existir um serviço de fiscalização efetiva para verificar a situação de regularidade dos colégios. “O inspetor só vai até o colégio no caso de uma denúncia registrada”. Ela afirma serem pouco comuns os casos de denúncia relacionados à falta de qualificação dos professores, pois geralmente os pais desconhecem esse aspecto. Existem mais denúncias em casos nos quais o colégio “segura” o histórico escolar do aluno para impedir a transferência para outra escola. Muitos alunos, inclusive, só descobrem a irregularidade de seus colégios quando, ao solicitarem o histórico escolar, percebem que eles não tinham autorização para funcionamento. “Quando o aluno estuda, por exemplo, da 1ª à 4ª série em um colégio desses é como se a vida escolar dele naquele período não tivesse existido, já que a escola não é reconhecida”, declara Sônia. Questionada sobre a razão de não haver uma fiscalização constante com o intuito de descobrir as escolas ilegais, Sônia diz haver poucos profissionais para isso. “São nove inspetores aqui nessa Coordenação, e, além de trabalharem em Salvador, eles atuam em outras regiões onde não há inspetor”, relata a coordenadora. Além da grande quantidade de escolas irregulares em Salvador, também há um número significativo de pedidos de autorização de funcionamento negados pela SEC-Ba. “Às vezes, a escola não recebe a autorização para funcionar por ser de acesso perigoso, ter problemas com sanitários ou salas com mofo”, diz Sônia. A coordenadora acredita que a saída para o problema da regularização das escolas consiste em conscientizar a população para a exigência da autorização de funcionamento no ato da matrícula e, com isso, pressionar as escolas ilegais para que estas legalizem sua situação. |
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