CIDADE
Aldeia hippie?
Elementos originais do movimento são quase imperceptíveis nos hábitos dos atuais moradores
Lucas Dantas
No início da década de 60, surgia nos Estados Unidos o movimento hippie, misturando valores da contracultura e da revolução sexual, proeminentes na época. Seus adeptos iam de encontro ao establishment, adotando um estilo de vida comunitária com o uso aberto de drogas. Contestavam a sociedade e os valores tradicionais, ao mesmo tempo em que pregavam o tão famoso “Faça o amor e não a guerra”. Ao longo da década, o movimento se expandiu por todo o mundo, e, no Brasil, um dos símbolos mais notórios foi a aldeia Hippie de Arembepe. Mundialmente conhecida, o local foi abrigo de celebridades como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Janis Joplin. Hoje, continua como uma referência nacional para a comunidade alternativa, além de ser um dos pontos turísticos mais famosos da região. A aproximadamente cinqüenta quilômetros ao norte de Salvador, a aldeia, junto com Arembepe, faz parte do município de Camaçari no litoral norte baiano. Identificar com exatidão seu surgimento não é tão simples. Enquanto a agência de notícias da prefeitura de Camaçari indica que o local “ficou conhecido nacionalmente nos anos 70, com aparecimento da primeira comunidade hippie do Brasil”, sites especializados no assunto alegam que a comunidade teria surgido ainda nos anos 1970. “Desde a década de 60, até mesmo no final da de 50, já tinham pessoas alternativas que pensavam diferente, mas ainda não eram hippies”, explica Álvaro Machado, um dos moradores mais antigos da aldeia, com 70 anos de idade. Residente intermitente do local, Álvaro abandonou a profissão de bancário e se mudou para a aldeia em 1972, sustentando-se “com o alicate”, como ele próprio se refere ao artesanato. Viajou à Argentina um mês após a mudança e, nos anos subseqüentes, seguiu intercalando viagens pela América do Sul e a estadia no vilarejo. Apesar de não ser presença constante, Álvaro é um dos moradores mais famosos. Já foi presidente da Associação dos Moradores da Aldeia Hippie e conhece o lugar desde o tempo em que ainda era uma fazenda. Não existiam estradas para Arembepe, acesso se dava somente a pé ou a cavalo. Em 1983, Álvaro e os demais moradores contaram as casas existentes e proibiram a construção de novas moradias, como também a prática do camping. “Se a gente não proibisse, ia virar uma favela, um parque. Os novatos agora vão se acomodando nas casas que já existem”, explica o artesão. A prefeitura de Camaçari, de acordo com ele, endossa todas as decisões da aldeia: “o prefeito atual viajou pelo mundo e viu que o mundo não conhece Camaçari, mas conhece a aldeia”. Embora a prefeitura construa novas estruturas, como um palco de shows e uma escola comunitária, a energia elétrica ainda é inexistente, por opção dos próprios hippies. Isso não significa, todavia, dizer que não assistam a televisão. “Antigamente quando se acendia uma fogueira havia um luau, as pessoas se reuniam. Hoje todos têm televisão à bateria de carro”, afirma. Viajantes de todo o Brasil, e de todo o mundo, fazem dessa vila um pit-stop do litoral nordestino, seja por afinidade com a cultura ou por simples interesse. A maioria dos moradores trabalha com o artesanato. Em todas as épocas do ano, seja no verão do hemisfério norte ou do hemisfério sul, há movimento turístico. Alguns se encantam tanto que acabam ficando. Foi o caso da moradora Maria. Depois de conhecer a aldeia numa viagem ao Maranhão com um grupo de música e teatro de Londrina, a paulista de São Carlos mudou-se para Salvador em 2005. Após uma tentativa frustrada de cursar o mestrado em Etnomúsica na UFBA, já tendo se graduado em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Maria veio acampar na aldeia através de amigos que conheceu no Pelourinho. Acabou ficando. “O lugar tem uma absorção. Arembepe, em tupi guarani, já quer dizer ‘aquilo que nos envolve’”, explica a artesã de 29 anos. Morando com seu companheiro Josias, 36, numa cabana a poucos metros da praia, a paulista é educadora na escola comunitária Menino Luz, construída recentemente pela prefeitura, além de trabalhar com um grupo cênico de bonecos. “A aldeia acolhe a todos”, comenta Maria com serenidade, apesar da política de não se erguer novas moradias. Seu futuro na aldeia, entretanto, é incerto: “financeiramente, a aldeia não está compensando. A gente vive com o dinheiro do dia. Precisamos de mais condições”, reclama, perguntando em seguida se há estágios disponíveis na área jornalística em Salvador. Outras pessoas parecem lidar bem com o aspecto econômico do modo de vida no vilarejo. Há 25 anos na aldeia, morando no Rancho Janis Joplin com os cinco filhos, o artesão Alceu afirma nunca ter passado por dificuldades para sustentar a família. “Vendo muito pra turistas. Aqui é um lugar sossegado pra criar meus filhos com liberdade. É o livre arbítrio”. Todos os filhos estudam em Arembepe, além de freqüentarem a Menino Luz, que, de acordo com o artesão, é uma escola apenas voltada ao lazer. A impressão inicial da aldeia pode confundir os visitantes de primeira viagem ou mesmo os que retornaram depois de muitos anos. No lugar das icônicas tendas com tetos de palhas, que são poucas atualmente, encontram-se casas espaçadas entre si, e alguma delas com cercas. Nesta que seria uma das últimas aldeias hippies do Brasil, o clima de receptividade e integração, geralmente associado aos participantes do movimento contracultural da década de 60, não é explícito e imediato. Os hippies, assim como as demais pessoas que não fazem parte dessa cultura alternativa, seguem o dia-a-dia rotineiramente. Alguns hábitos, como o uso de drogas, ainda persistem, mas muitos dos ideais perderam-se com o tempo. “A beleza hippie não existe mais”, encerra o ancião Álvaro. |
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